quarta-feira, 5 de julho de 2017

VAN MEEGEREN - O MAIOR FALSÁRIO DE ARTE DE TODOS OS TEMPOS

Nicéas Romeo Zanchett 

              A genialidade do pintor falsário que fabricava obras atribuídas a mestres do século XVII chegou a tal perfeição que, ao ser chamado para dar explicações à justiça sobre duas obras atribuídas a Vermeer (Cristo e a Mulher Adúltera) descobertas na mina de sal Alt Ausee, na Áustria, teve de provar que eram obras falsas por ele produzidas, para não ser condenado à morte. 
                                                                                 .
               Para entender essa história absurda é preciso primeiro saber quem foi este genial falsificador de pinturas. 
                Han Van Megereen nasceu em 3 de maio de 1889; terceiro dos cinco filhos do professor Henricus Van Meegeren que ensinava inglês e história na escola normal de Deventer. Autor de vários manuais escolares e conduzia seus alunos e família sobre severa disciplina; não tolerava pensamentos ou atitudes que fossem contrários à tradição da sociedade vigente. 
                 Sua mãe, Augusta, teve de renunciar a seus indiscutíveis pendores para a música e a pintura. Essa sensibilidade reprimida seria reencontrada no jovem Han - o mais delicado, o mais frágil de todos os seus filhos. O desenho, muito cedo, passou a compensar seu sentimento de inferioridade física, como ele mesmo diria mais tarde: "Eu inventava um universo em que era rei e os meus súditos, leões". O pai, sempre desconfiado, sentia-se desolado com esses exercícios. Rasgava os desenhos que encontrava e proibia a mulher de manifestar qualquer aprovação a essa mania criadora. No entanto, pela repressão, alimentava mais ainda, no filho, o desejo de se realizar artisticamente. 
                  Compreendendo-se, portanto, por que Ham Van Meegerem tenha sido, a partir dos 9 anos de idade, um menino travesso que gostava de combater os símbolos. Certa feita, vendo a chave na porta, trancou uma delegacia pelo lado de fora, obrigando os policiais a saltarem pelas janelas e pelo telhado. De outra, pouco antes da hora do ofício, sumiu com todo o vinho da igreja de seu tio. 
                  Foi durante os estudos secundários que Han Van Meegeren teve um encontro decisivo. Bartus Korteling, seu professor de desenho, era também um pintor de grande valor, embora sem muita reputação. Em pouco tempo, Van Meegeren tornou-se seu melhor aluno e entre eles nasceu uma amizade que nunca se desfez. Apesar da declarada hostilidade do pai, Han passava todo seu tempo livre no estúdio de Korteling. Este o ensinava a dominar a apreciar as técnicas antigas. Para Korteling e, por extensão, para seu aluno, a verdadeira pintura parava no século XVIII. Terborgh, Franz Hals, De Hoogh, Vermeer eram seus mestres. 
                  Van Meegeren encontrava assim em Korteling seu caminho e aquilo que seria seu limite. Sob a influência de um homem que" não tinha tempo a perder com os modernos", o aprendiz de pintor recusava-se a aceitar o estilo contemporâneo, cuja técnica julgava fácil e medíocre. Como no tempo dos grandes mestres, aprendia a fabricar suas próprias cores. Korteling iniciou-o meticulosamente nessa alquimia, que, mais tarde, se revelaria particularmente eficaz. 
                  O cinabre (minério de mercúrio) fornecia-lhe o pigmento do vermelhão, a terra de Siena queimada ( mistura calcinada de argila, óxido férrico hidratado e bióxido de manganês) produzia o vermelho-vivo. ara obter o amarelo, triturava e lavava o ocre em estado natural; o branco era o branco de cerusita; o preto era o preto de carvão, etc. As cores sintéticas já eram usadas há muito tempo e  atitude de van Meegeren, induzida por seu professor, indicava o partido tomado: em vez de pintos de vanguarda. ele seria um criador devotado à tradição. 
                  Entrementes, o conflito entre pai e filho encontra uma pequena trégua. Ambos aceitas uma solução de compromisso.  Mesmo sem apreciar os pendores artísticos de han, o professor Van Meegeren admite que aquele é o único de seus filhos com possibilidade de acesso aos estudos superiores. Aos 18 anos, Han Van Meegeren é matriculado no instituto de tecnologia de Delft, para, sem muito entusiasmo, seguir o curso de arquitetura. Seu pai acaba tolerando essa escolha, que não é de todo incompatível com seus princípios. 
                  Mas Van Meegeren demonstra mais interesse pela Escola de Belas-Artes, que passa igualmente a frequentar. Dedica-se muito mais à pintura do que à arquitetura e passa as férias em casa de Bartus Korteling, aperfeiçoando sua formação artística.  Não deixa, contudo, de prestar regularmente seus exames. 
                  Durante o verão de 1911, ao concluir o quarto ano de estudos, conhece a eurasiana Anna de Voogt. Casam-se na primavera seguinte, apesar do antagonismo do pai de han; a jovem está grávida. O casal passa então a viver em casa da avó de Anna, em Rijswijk, enfrentando sempre grandes dificuldades materiais. 
                  Foi nessas condições que, aos 23 anos, Van Meegeren começou a vender seus primeiros quadros. Vendeu meia dúzia deles, por somas irrisórias. Encorajado pela mulher, convencia-se cada vez mais de que devia se tornar um pintor profissional, o que só era possível em detrimento de seus estudos de arquitetura. 


A IGREJA DE SÃO LOURENÇO
                  De cinco em cinco anos realizava-se em Delft um concurso de pintura para estudantes. A medalha de ouro, prêmio conferido à melhor obra, dava ao vencedor, além de vantagens financeiras, prestígio e notoriedade imediata. 
                  Decidindo tentar a sorte nesse concurso, Van Meegeren lança-se à composição de uma aquarela, cujo tema seleciona habilmente: o interior da igreja de São Lourenço, em Rotterdan. A grande complexidade do assunto lhe permitiria dar provas de sua técnica acadêmica, bem como aplicar seus conhecimentos de arquitetura. A obra o absorve totalmente, e Han é reprovado nos exames de arquitetura. Seu pai concede-lhe um empréstimo - mediante juros - para financiar o ano de estudos que era preciso repetir. 
                  Mas o quadro é terminado e inscrito no concurso. O Júri, sensível ao estilo tradicional holandês e à virtuosidade da execução, concede unanimemente a Van Meegeren o primeiro prêmio. Han torna-se um artista conhecido e sua aquarela é vendida por uma elevada soma. Suas outras obras podem, a partir de então, merecer melhor consideração e alcançar cotação mais elevada. É o que leva o artista a abandonar definitivamente os estudos de arquitetura; Han não mais se apresenta para os exames. Agora é um pintor. Entretanto, ambicionava galgar a escala social e por isso apresentou-se à Academia de Belas-Artes de haia, que lhe conferiu o título de mestre. Tinha nessa ocasião 25 anos, e a Primeira Guerra Mundial começava. 
                  Algum tempo depois, o cargo de professor da Academia é oferecido a Van Meegeren, que o recusa para melhor dedicar-se à sua obra. Concorda, porém, em ser, provisoriamente, assistente do professor Gips, decano dos professores de Delft, posição que lhe deixa mais tempo livre. Mas o salário é insuficiente. Han acaba de se mudar para Delf e, além disso, sua mulher esperava o segundo filho. Como a venda dos seus quadros também não bastava para resolver os problemas financeiros, Van Meegeren resolve pintar um falso Van Meegeren. 
                  O Interior da Igreja de São Lourenço, que lhe valera a medalha de ouro, e continuava sendo sua obra mais cotada. Secretamente Han a copia com intenção de vendê-la a um rico colecionador que logo partiria de Delft. A ideia era fazer passar a cópia pelo original, dando a entender que a obra premiada não passava de uma cópia. Sua mulher, no entanto, impede-o de consumar a trama. A cópia acaba sendo vendida pelo valor real, ou seja 25 vezes menos do que o valor da aquarela original. Van Meegeren não se conforma com o sistema comercial que regia o mundo da pintura. Para ele, as duas obras, absolutamente idênticas entre si, e realizadas por ele, tinham o mesmo valor. 

UM MERO RETRATISTA
                   Apesar desse incidente, o pintor continuava em ascensão. Sua habilidade técnica aperfeiçoava-se e, embora seus temas continuassem a ser tradicionais, ele era apreciado por um certo número de amadores que viam nele "um artista a ser imitado". Assinando um contrato com o negociante de quadros Van der Wilk, realizou sua primeira exposição em 1916. O virtuosismo de sua técnica mascarava a falta de unidade de sua obra. As primeiras telas de Van Meegeren - desenhos a lápis, a bico de pena ou craiom, pinturas a aquarela ou a óleo - conduziam o espetador dos interiores de igrejas aos retratos de seu filho adormecido, de banhistas na praia a paisagens campestres.  
                  Mas os críticos não notavam a desarmonia do conjunto e deram calorosa acolhida à exposição. Todas as telas foram vendidas, e Van Meegeren passou a ser apreciado pela sociedade local, que a partir de então lhe encomendava retratos e aulas particulares de desenho. Um ano depois, Han já estava em condições de se instalar em Haia.  Montou um estúdio onde dava aulas a um grupo de jovens da sociedade que pretendiam entender de pintura. Aos poucos a vida se tornava mais amena. 
                  É nessa época que realiza trabalhos de natureza comercial (cartazes, cartões de Natal, etc.) e acontece um episódio particularmente significativo. Conseguindo com que o gamo da princesa Juliana lhe seja levado diariamente ao atelier a fim de servir de modelo. Van Meegeren faz alguns quadros com ele. Depois sugere-os a um editor de calendários. Este, pouco convencido de início, entusiasma-se não só pela beleza das figuras, mas principalmente  pela procedência do animal. E a figura do gamo pintado por Van Meegeren tem um destino espetacular, vindo a ser o quadro do gênero mais reproduzido na Holanda. 
                  Van Meegeren percebe, contudo, o caráter equívoco desse sucesso. Continua gostando de pintar, mas, para ele, a opinião dos outros está definitivamente prejudicada. 
                  O comércio continua e Van Meegeren ganha muito dinheiro. Enriquece graças aos trabalhos feitos sob encomenda. Sua obra pessoal se empobrece e os críticos começam a duvida da autenticidade de seu espírito criador. Alguns chegam a achar que o artista está "acabado", Irremediavelmente transformado em retratista da sociedade. Han pinta quadros tecnicamente impecáveis, à maneira de Rembrandt e de Hals, que convém admiravelmente à decoração artística dos aposentos de um diretor de empresa ou de um alto funcionário. Entretanto, recusa em contrato especialmente vantajoso que o chama para os Estados Unidos; continua preocupado em realizar uma obra pessoal. 
                  Acredita que, mais cedo ou mais tarde, seu gênio será reconhecido, apesar da indiferença dos críticos, os quais passa a provocar. Com seus dois melhores amigos, o pintor Theo Van Wijngaarden e o jornalista Jan Ubink,  funda uma revista para atacar a vaidade e a pretensão de infalibilidade daqueles que se arvoram em juízes da arte. A revista, De Kemphaan (O Combatebte), refeita os valores artísticos contemporâneos em favor de uma exaltação reacionária da velha tradição. Entretanto, depois de uma dezena de números, bastante dispendiosos, De Kemphann deixa de circular, sem ter despertado a menor reação. 

O PINTOR MARGINALIZADO
                 Van Meegeren, impressionado pela habilidade comercial de seu amigo Van Wijngaarden, passa a restaurar telas de autores menores dos séculos XVII e XVIII, compradas por uma ninharia dos antiquários. Sua técnica apurada lhe permite conferir a esses quadros sem valor a dignidade das obras de arte. A iniciativa é muito lucrativa e ainda se enquadra nos limites admissíveis da honestidade. 
                  Pouco a pouco, esse trabalho de restauração toma amplitude e chega a beirar o terreno da falsificação, em que Van Meegeren ainda não ousa entrar. É o acaso que leva o pintor a duvidar definitivamente das virtudes da probidade. 
                  Em 1928, Van Wijngaarden e Van Meegeren descobrem uma tela em que reconhecem imediatamente um Franz Hals. Trata-se do retrato de um cavalheiro que, se autenticado, valeria uma fortuna. Por isso, restauram-no com um cuidado todo especial e apresentam ao dr. Hofstede de Groot, conhecido crítico e historiador de arte. Este, sem nenhuma hesitação, reconhece também no quadro uma obra do mestre e dispõe-se a encontrar um comprador. Concluída a venda, o critico de arte Bredius, cuja autoridade era incontestável e tinha força de lei, declara que se trata de uma falsificação. Sua palavra cala qualquer outra e Vam Wijngaarden e forçado a reembolsar o comprador, enquanto Van Meegeren contesta veementemente a infalibilidade de Bredius. 
                 Van Wijngaarden decide provar a incompetência absoluta dos peritos. Pretendendo enganar Bredius, apresenta-lhe um Rembrandt recentemente pintado por ele mesmo, Van Wijngaarden. A sumidade reconhece a tela à primeira vista; trata-se sem dúvida de um Rembrandt, cuja venda representa muito dinheiro. A propósito, Bredius não deixa de observar a Van Wijngaarden que o certificado de autenticidade, dado a essa obra, compensava de certa forma o Franz Halz perdido. Intransigente, Van Wijngaarden prefere a vingança ao lucro. Num gesto teatral, saca do bolso uma navalha e se põe a retalhar calmamente o Rembrandt. Ridicularizado, Bredius não se dá por achado; o mercado da pintura é muito mais poderoso do que uma mistificação, por mais brilhante que seja.
                   Para Van Wijngaarden e Van Meegeren, a incapacidade da crítica era flagrante e os meios artísticos, mais do que nunca,submissos às convenções. O episódio do Rembrandt significava para Van Meegeren uma evidência disso, um exemplo a ser aperfeiçoado.  
                   Van Meegeren vai completar 40 anos. Desde que se divorciou de Anna de Voogt, há seis anos, leva uma existência agitada. A mulher com a qual vive frequentemente, Jo de Boer, é esposa de um dos raros críticos que lhe são favoráveis. Casam-se em 1929, sem que isso impeça o pintor de escapar com outra de suas modelos. A ruptura com o pai, que o renega é total. Van Meegeren  se sente excluído de tudo. 
                  Suas raras obras criativas, marcadas por uma apatia perturbadora, testemunham uma inspiração incerta. Nada revelam de sua fúria da agressividade e do desprezo que dedica à crítica. O artista é dominado por uma vontade de poder que não encontra seu objetivo - e que não se manifesta em sua pintura. Restam-lhe a mulher, Jo, e um pequeno círculo de amigos que alimentam a ideia de que é um gênio incompreendido. A crítica em geral desdenha ironicamente do estilo obsoleto de seus "quadros povoados de inocentes cabritos cheirando amendoeiras em flor, ou de pianistas do tipo Paderewski inspirados pelo fantasma do grande Liszt". 
                 Em 1932. sentindo-se vítima do que imagina ser uma conspiração geral, Van Meegeren deixa a Holanda em companhia da mulher. Depois de uma estada na Itália, o casal instala-se em Roquebrune, no sul da França, onde aluga uma casa na encostada montanha: "La Primavera". 
AS EXTENUANTES PESQUISAS
                 Uma vez dispondo de condições objetivas. Van Meegeren toma importante decisão: realizará suas ambições atravez da falcificação. Movido pelo desejo de vingança, coloca em marcha o mesmo mecanismo que produziu o Rembrandt. Deseja provar que é capaz de se igualar aos maiores mestres, isto é, a Franz Halsz, Terborgh, Vemeer. Que petrificar de uma vez por todas o conjunto da critica. Quer ser glorificado por intermédio das celebridades. Quer, finalmente, ser admirado por seu feito; propõe-se a revelar a mistificação assim que esta tenha alcançado uma repercussão irreversível. 
                 Esse programa lhe exigiria quatro anos de trabalho, de pesquisas e experiências extenuantes. Era preciso continuar executando obras de encomenda (retratos dos ricos turistas da Côte d'Azur, para poder financiar seu empreendimento delirante. Ao contrário dos falsificadores comuns,  Van Meegeren  não duvidava um instante sequer de sua capacidade de produzir um novo Vermeer ou um novo De Hoogh.  Quanto às dificuldades estéticas, sentia-se seguro de seu virtuosismo. Somente os problemas técnicos o preocupavam. Tratava-se de executar um quadro que ninguém, nem mesmo recorrendo às mais minuciosas análises científicas, pudesse distinguir das telas de três séculos de idade. A complexidade do trabalho era, portanto, inimaginável. Cada solução encontrada revelava uma nova dificuldade que Van Meegeren precisava enfrentar. 
                 Conseguir tela e moldura autênticas era coisa relativamente simples. Não era difícil arranjar um quadro, ainda em bom estado, de algum artista menor do século XVII. Bastava raspar as diferentes camadas de pintura, sem retirar a camada de fundo - uma operação delicada, monótona e lenta. 
                 As análises químicas revelariam a idade de qualquer substância posterior à época do grande pintor.  Van Meegeren, que aprendera a preparar suas tintas, sabia como manipular as matérias-primas que Vermeer utilizara na fabricação de suas cores. Mas a maioria delas, principalmente o lápis-lazúli, era muito rara e dispendiosa. Van Meegeren as encontraria na maior drogaria de |Londres, Winsor & Newton. 
                 Em seguida, colocava-se o crucial problema das rachaduras, através das quais as falsificações são reconhecidas. A pintura a óleo seca aparentemente muito depressa. Mas, na verdade, somente a superfície da pintura endurece - e secagem completa leva pelo menos meio século. Depois disso começam a aparecer as minúsculas rachaduras que se ramificam e se multiplicam com o correr do tempo. 
                  Portanto, para se pintar um "autêntico" Vermeer, é preciso produzir artificialmente uma trama finamente entrelaçada de fissuras correspondente a trezentos anos. Em outras palavras, para que a radiografia não possa desvendar o artifício, é necessário que essa trama exista em cada uma das camadas da pintura, até mesmo na camada de fundo, e isso de um modo rigorosamente uniforme e idêntico. Um quadro que apresenta outras rachaduras, em camadas inferiores, é imediatamente considerado suspeito. Depois de ter raspado uma tela antiga, o problema de Van Meegeren consistia em pintá-la, conservando meticulosamente cada uma das fissuras da camada de fundo original. Desse modo, o falsificador traria para a superfície o tempo marcado pelo fundo da tela. Restava, finalmente descobrir um meio de endurecimento da pintura recente, igual a vários séculos de secagem. Van Meegeren entrega-se a múltiplas experiências. Para endurecer artificialmente a pasta, além de um forno, era necessário descobrir um agente químico que impedisse qualquer alteração das cores durante o aquecimento. Os endurecimentos habituais (o óleo de linhaça, por exemplo) não são adequados; o aquecimento provoca o esmaecimento das cores e ocasiona bolhas e queimaduras. Em compensação, as essências oleosas (óleo de lilás, essência de alfazema) protegem melhor a tinta, mas não apressam o endurecimento. Depois de vários meses de esforços infrutíferos, Van Meegeren resolve recorrer às mais recentes conquistas da química contemporânea, associando-as a seu profundo conhecimento de história da arte. 
                  Faz uma descoberta fundamental para a realização de seu projeto. A baquelita começava a ser comercializada. Trata-se de um sólido muito duro, embora composto essencialmente de líquidos sintéticos: fenol e formaldeído. Van Meegeren emprega uma mistura de fenol- formaldeído para, através do aquecimento, endurecer completamente sua pintura. A operação da mistura é bastante complexa. De um lado, a resina de fenol-formaldeído é dissolvida em essência de terebentina; de outro, os pigmentos corantes são misturados com óleo de lilás para formar a pasta propriamente dita. Misturando os dois grupos de substância (previamente ou a cada pincelada). Van Meegeren obtém  uma tinta que endurecerá corretamente no forno, isto é, sem alteração das cores; permitirá o aparecimento rápido e perfeito das rachaduras da camada de fundo; e conservará alguns resíduos de resina, não evaporados. Mas, como ninguém jamais poderia supor que tis produtos fossem utilizados, não ocorreria a  a tela a uma análise química específica para determinar sua presença. 
                 Em 1934, Van Meegeren consegue compor uma tinta que, submetida a uma temperatura de 105 graus C, em forno apropriado, endurece perfeitamente ao cabo de duas horas - a ponto de resistir a um solvente normal. 


OS ENSAIOS
                 Doravante, Van Meegeren precisa verificar de um modo global ( e não mais parcial, como até então) a validade de suas hipóteses e sua descoberta. O método de raspagem e conservação das rachaduras precisa ser comprovado nas dimensões de uma tela real.
                 Começa a trabalhar numa tela do século XVII. É preciso remover a pintura preservando perfeitamente a camada inicial de tinta. Água, sabão, pedra-pomes, faca e cinzel são as ferramentas. A tarefa é ingrata e interminável. Cada fragmento da pintura precisa ser raspado separadamente, e há milhares deles. A virtuosidade técnica e a paciência do falsário lembram a tenacidade de um maníaco paranoico. 
                 Em seguida, é preciso pintar. No momento, a estética pouco importa, trata-se apenas de um ensaio geral. Van Meegeren recobre com um chapado o fundo que foi mantido; as rachaduras reaparecem na superfície. Tão sisa quanto se possa desejar, a superfície de trabalho está pronta. O pintor lança mão de sua mistura de tinta toda especial e traça esboços. leva-os ao forno. O resultado é positivo; as rachaduras vem para a superfície. 
                  Van Meegeren é um perfeccionista. Torna-se um virtuoso na reconstituição das rachaduras. Acrescenta à ação do forno processos puramente mecânicos. 
                  Enrola a tela num cilindro e gira-a em todas as direções. Submete-se a ligeiras compressões de dedo, pelo verso. Observa que a camada de verniz,secando normalmente, ativa o aparecimento da rachaduras depois do aquecimento. As fissuras obtidas resistirão a qualquer dúvida. 
                  Mas o uso de verniz revela outra insuficiência. No curso dos séculos, a poeira se acumula até nas menores fissuras de um quadro. \esse detalhe não pode ser negligenciado.  Van Meegeren inventa um recurso simples e engenhoso. Depois de seco o verniz, recobre toda a tela com uma amada de tinta nanquim. Esta se infiltra nas fissuras que o verniz moldou. Como a tinta empregada na pintura resiste aos solventes, basta a Van Meegeren passar essência de terebentina para remover o verniz e a tinta nanquim. Mas nas ranhuras fica um resíduo de nanquim que simula poeira. Finalmente, para dar ao quadro seu aspecto definitivo, o pintor passa uma última demão de verniz. Resolvidos todos os problemas técnicos, o falsificador pode agora pensar na criação. 


AS PRIMEIRAS FALSIFICAÇÕES
                    Em 1935, Van Meegeren passa à ação. Pinta um Franz Hals, um Terborgh, dois Vermeer. A primeira dessas telas, Mulher Bebendo  (78 x 66 cm), é um ensaio dos mais promissores. O Retrato de um Homem (30,5 x 24,5), à moda de Terborgh, fica no rascunho. A Dama Lendo Música (57 x 48 cm) e  A Tocadora de Alaúde (63,5 x 49 cm), "atribuíveis" a Vermeer, podem perfeitamente ser aproveitados. 
                  Com efeito, A tocadora de Alaúde, que Van Meegeren deixou inacabada, era diretamente inspirada em temas típicos de Vermeer. O quadro lembra o casa O Casal ao Cravo, tela existente no palácio de Buckingham. A iluminação (janela sem cortinas à esquerda do quadro), as sombras, o espelho e os elementos nele refletidos, os objetos tipicamente vermeerianos, tudo concorre para reproduzir a atmosfera que o mestre costumava criar. À primeira vista, reconhece-se nele um Vermeer. Da mesma maneira, a Dama Lendo Música lembra A Dama de Azul,  do acervo do Rijksmuseum. O rosto da jovem tem grande semelhança com os traços daquela que e supõe ter sido mulher e modelo de Vermeer. Essa segunda tela apresentava, tanto do ponto de vista técnico quanto da inspiração, todas as características de um legítimo Vermeer e poderia ter sido vendido por uma quantia considerável. No entanto, Van Meegeren não tentou vender nenhuma dessas obras. 

UMA ESCOLHA AMBICIOSA
                  Ao deixar de vender a Dama Lendo música, Van Meegeren ultrapassava todos os falsários que o precederam. Qualquer outro tentaria imitar Vermeer em suas obras mais conhecidas. Mas Van Meegeren só o fez a título de ensaio. Sua intenção era muito  mais ambiciosa. Não se contentava em pintar um quadro de um grande mestre do século XVII. Queria que esse quadro passasse por um trabalho decisivo desse mestre, a ponto de modificar completamente  o estudo e a crítica consagrados á sua obra. A escolha de Vermeer, de preferência a outros pintores holandeses, prendia-se à raridade da produção do grande artista, sujeita ainda a diversas hipóteses. Só se conheciam 28 telas autênticas de Vermeer. A descoberta artística do pintor datava do século XIX e a crítica pressupunha que havia numerosos quadros por serem encontrados. 
                   Por outro lado, toda a obra de Vermeer era de caráter profano (ambientes interiores, retratos, paisagens), com uma exceção: o Cristo de Maria e Maria, National Gallery, de Edimburgo. Essa tela fora autenticada por Bredius, que era a suprema autoridade na matéria. Bredius considerava a descoberta dessa obra o grande sucesso de sua vida. Em consequência, todos os historiadores se arte julgavam plausível a existência de outros quadros do artista com a mesma inspiração. 
                  Van Meegeren pintaria os Vermeer"que faltavam"; aqueles de caráter religioso. Para fazê-lo, contava não somente com sua capacidade técnica, como também com a previsível reação dos críticos, peritos e historiadores de arte, cujas tendências conhecia tão bem. A função dos críticos - no que tem de mais excitante para eles próprios - estaria justificada pela revelação do inesperado e pela interpretação dada. Van Meegeren lhes forneceria esse inesperado e revelaria ao mesmo tempo a fragilidade de suas presunções. 
                 Impressionado pelo golpe teatral de seu amigo Van Wijngaarden rasgando o falso Rembrandt, Van Meegeren resolve levar seu jogo muito mais longe; fará com que a tela seja autenticada e vendida pelo mais alto preço. Ela será exposta e comentada à vontade. E quando o entusiasmo geral estiver no auge, revelará a mistificação. Assim o mundo reconhecerá seu gênio publicamente, e de modo mais brilhante.
                  Está igualmente decidido a resistir à fabulosa soma que irá receber. Será um herói muito especial. Como nos sonhos de infância, será um rei domando leões. Além disso, pintar uma obra-prima que o mestre não pintou dava-lhe a condição de criador. 
                  Colocava-se em lugar de Vermeer, mas nesse lugar reservava um espaço para si. Uma vez revelado o embuste, Vermeer desapareceria para ceder lugar a Van Meegeren. Percebe-se em sua atitude uma grande dose de fantasia, sem a qual sua aventura não teria sido possível.
                  Van Meegeren vira, na Itália, um dos três Cristo em Emaús, pintados por Caravággio. Sabia que o tema fora pouco explorado e imaginou que o aparecimento de uma tela de Vermeer com esse assunto teria o efeito de uma bomba. Cometários, digressões eruditas estabelecendo correlações, diferenças e influências eventuais, admiração maravilhada diante dessa descoberta, tudo isso alimentaria os críticos. Sua escolha está feita e contém certa dose de humor. Entre a situação de Cristo em Emaús e aquela que Van Meegeren se dispõe a provocar, existe uma relação; algum tempo depois de sua ressurreição, Cristo aparece em Emaús, e se apresenta a dois de seus discípulos. Estes, de início, não o reconhecem. Somente quando parte o pão e o abençoa - gesto revelador - é que os discípulos reconhecem o Mestre. Foi preciso, portanto, que Cristo desse uma prova de sua identidade. Van Meegeren  não deixa de identificar ironicamente essa situação com aquela que vai encenar. A analogia está no fato de que, antes de ser reconhecido, será tomado por outro. Claro está que os discípulos são os peritos, os cegos. Será preciso mostrar-lhes tudo. Enquanto não forem capazes de enxergar, Van Meegeren lhes mostrará o Cristo em Emaús, de Vermeer. 


A EXECUÇÃO
                 Adquirindo uma Ressurreição de Lázaro, autêntica tela do século XVII, o falsário inicia seus preparativos. Antes de remover a pintura, retira a tela da moldura e cortado seu lado esquerdo uma faixa de 50 centímetros. Em seguida, diminui a moldura nas mesmas proporções. Ambas as operações são destinadas a provar que o Vermeer que vai pintar é falso. Pela primeira vez na história, um falsificador pretende conservar as provas do seu embuste. Nisso assume um risco considerável -mas não se pode esquecer que,nesse momento, Van Meegeren só desejava tornar-se Van Meegeren, com a ajuda de Cristo e Vermeer.
                Durante a raspagem da tela (estendida sobre uma prancha), deparou com duas dificuldades. O branco de cerusita resistia num certo ponto e, continuando a raspá-lo, corrio risco de estragar a trama das rachaduras. O pintor contornou a dificuldade integrando esse branco em sua própria distribuição de cores. Por outro lado, pelas mesmas razões não conseguiu fazer desaparecer completamente a cabeça de uma das personagens do quadro original.  Como certos pintores do século XVII -Vermeer inclusive - costumavam reutilizar telas inacabadas, isso não podia constituir prova de falsificação, caso a obra fosse submetida a exames radiográficos. 
                 Van Meegeren recobre o fundo original castanho (à base de ocre e branco de cerusita) com um novo chapado que unifica a superfície da tela. Levando-a ao forno, verifica que as rachaduras estão bem aparentes. Só falta começar a composição. 
                  A ambição e a excitação de Van Meegeren fazem-no colocar o melhor de si nesse Cristo. Consome seis meses de atividade frenética na realização da sua obra. Sua qualidade - mesmo no plano artístico - é inegável; o quadro está realmente à altura da gigantesca confusão que vai criar. 
                   Compelido a observar segredo absoluto, Van Meegeren não pode empregar modelos vivos. Mas consegue transformar essa dificuldade em vantagem suplementar, tomando seus modelos da obra de Vermeer. Em outras palavras, as personagens das telas de Vermeer reaparecem num contexto religioso. Desse modo, o discípulo Cleofas, no Cristo de Emaús, apresenta um rosto que é uma combinação dos rostos do Astrônomo  e do Cristo de Maria e Maria; a posição da mão e do ante braço do personagem  aparece igualmente no Astrônomo. A própria figura de Cristo seria obra do acaso. Van Meegeren contaria mais tarde a história: 
                  - "Um dia bateram à porta de minha casa. Como estava sozinho, fui abrir e me vi diante de um desconhecido que tinha os olhos de Cristo. Passada a surpresa,interroguei o visitante; era um ferroviário italiano que retornava a seu país depois de ter trabalhado alguns meses na França. Andava pela estrada pedindo esmolas. Pedi-lhe que posasse para mim.Ele aceitou e deu provas de espantoso amor-próprio. Contentava-se com o pão de centeio, o alho e o vinho que eu lhe dava. Quando compreendeu que servia de modelo para representar Cristo, ficou pálido e se benzeu."
                    Esse modelo inesperado pareia ter distraído Van Meegeren, que, ao pintar o rosto de Cristo, deixa transparecer um de seus toques pessoais: as pálpebras, muito largas e baixas, constituem uma característica do próprio Van Meegeren e não de Vermeer. 
                  Van Meegeren era notoriamente um agnóstico, mas, impressionado por seu modelo, concordou em satisfazer um curioso pedido: - "Profundamente perturbado, o mendigo chegava a gritar em seu sono que não era digno de fazer a figura de Cristo. Implorava-me para que rezasse por ele, pois temia a cólera de Jesus." 
                   Eis a espantosa prece que Van Meegeren assegura ter feito: 
                   - "Meu Deus, se o Senhor existe, peço-lhe que não condene esse homem por ter participado de minha obra: eu assumo toda a responsabilidade. Meu Deus, se o senhor existe, não leva a mal a liberdade que tomei ao escolher um tema bíblico. Eu não quis ofendê-lo e essa escolha é pura coincidência." (Citado por Moiseimitsh: The Van Meegerem Mystery). 


A ASSINATURA 
                 Pode-se notar que a proximidade entre Han Van Meegeren  e Johannes Vermeer de Delf existe até nas letras que compõem seus nomes. Essa coincidência não deixaria de ajudar o falsificador no momento de uma operação delicada: a da assinatura do quadro. 
                 Na primavera de 1937, Van Meegeren termina o Cristo em Emaús. Antes de passá-lo uma última vez pelo forno, hesita ; assinará a obra com o nome de Vermeer ou não? A assinatura, por si só, não constitui prova de autenticidade. Mas uma assinatura mal feita, pelo contrário, constitui indício seguro de falsificação. E, juridicamente, alguém só poderá ser incriminado em caso de assinatura fraudulenta. Van Meegeren acaba se decidindo a colocar a assinatura de Vermeer. Seu quadro demasiadamente especial para que corra o risco de uma verificação mais minuciosa, por falta da marca do mestre. 
                  Acontece que não é fácil imitar as assinaturas de Vermeer. Nesse ponto, o falsário mais uma vez emprega todo o seu virtuosismo; uma vez iniciado o traço, não é possível corrigi-lo; é preciso terminá-lo de um só golpe. Van Meegeren adota um dos monogramas mais usados por Vermeer ( I maiúsculo colocado no eixo do M, o  fundido à perna central do M).  O resultado é bastante conveniente e a tela está em condições de sofrer o último "envelhecimento". 
                 As dimensões do Emaús  (115 x 127 cm) , sensivelmente superiores às das quatro falsificações precedentes, haviam obrigado Van Meegeren a comprar um forno muito maior e mais aperfeiçoado. No forno apagado, coloca a tela sobre um suporte, 50 cm de distância da placa inferior. O doso do quadro está voltado para baixo. Van Meegeren fecha hermeticamente o forno. O termostato é regulado para 105 graus Centígrados. Duas Horas decisivas se escoam, colocando em jogo três séculos de pintura, quatro anos de pesquisas, seis meses de trabalho criativo. 
                  Espera, angústia, e sucesso total. À luz dessa primavera de 1937, Van Meegeren examina a maior mistificação pictórica de todos os tempos - sua obra. As cores haviam resistido maravilhosamente.  A pintura apresenta uma rigidez de trezentos anos e uma perfeita trama de rachaduras. falta o toque final: verniz, nanquim-poeira, limpeza com terebentina e envernização final. 
                  Por experiência própria, Van Meegeren sabe que a perfeição absoluta é duvidosa. Resolve, por isso, estragar sua tela. Um quadro tão "antigo" deve necessariamente apresentar algumas restaurações. Em 1937 não existem mais Vermeer novos... Com uma faca, o falsário arranha a pintura em vários lugares e chega a rasgar um pouco a tela - exatamente na ponta do anular semi-levantado de Cristo. Depois inicia a recomposição desses estragos, tomando a precaução de dar às restaurações um aspecto relativamente grosseiro. 
                   Agora a tela pode voltar à moldura original. Van Meegeren lhe dá os últimos retoques; sua obra prima está pronta para ser revelada ao público.


AS DUAS VERSÕES
                   Falta apenas arquitetar um plano para lançar o quadro. Van Meegeren não ignora o mecanismo do mercado de arte, conhece perfeitamente a psicologia das pessoas que deseja desmoralizar. Resolve agir sozinho - como até então. Terá intermediários inocentes, mas não contará com nenhum cúmplice. 
                    O primeiro objetivo é a obtenção de um certificado de autenticidade para a obra, assinado por uma autoridade incontestável. O nome de Bredius se impõe, por todas as razões. Foi ele quem descobriu o Cristo de Maria e Maria  (único quadro conhecido de Vermeer, de caráter religioso); é o árbitro supremo na matéria e é a ele que Van Meegeren deseja liquidar. Bredius é o maior representante dessa casta de peritos e onipotentes com os quais é preciso acabar de uma vez. Van Meegeren deve, portanto, dirigir-se a ele. 
                   Mas, para tal, é preciso encontrar um intermediário  suficientemente respeitável para merecer a consideração de Bredius.Há muito tempo. Van Meegeren, conhecera na Holanda um conselheiro jurídico, parlamentar dotado de excelente reputação: dr. G. A. Boon. Amante das artes, constituía, sob todos os pontos de vista, um excelente intermediário. Van Meegeren, com sua tela cuidadosamente embalada numa caixa, parte de Roquebrune com destino a Paris. Ao chegar, procura, o dr. Boon e lhe conta o seguinte: 
                 Uma mulher chamada Mavroeke é uma das três descendentes de uma velha família holandesa. Mora h´mais de vinte anos na Itália, para onde transferira a coleção de quadros do castelo ancestral de Westland. Nessa coleção, passada de geraçãoem geração, existiriam nada menos de 162 telas de Holbein, El Greco, Rembrandt e Hals. Desejando partir da itália fascista, a sra. Mavroeke pedira conselho e ajuda a Van Meegeren; desejava vender clandestinamente na França alguns desses quadros, já que o regime fascista proibia a exportação de obras de arte. Ele, Van Meegeren, se encarregara de transportar a primeira dessas telas, em que acreditava reconhecer um autêntico Vermeer. 
                  Em seu retrato, o falsificador valeu-se habilmente da situação política do momento. A despeito do seu caráter romântico, a história não apresentava incoerências e, se a autenticidade do quadro fosse reconhecida, sua providência não seria objeto de maiores investigações. 
                  Muito impressionado pelo quadro, o dr Boon compreendeu que ali estava a oportunidade de realizar um ato patriótico e uma respeitável operação financeira, a título de intermediário. Concordou em procurar Bredius e admitiu a conveniência de não mencionar o nome de Van Meegeren. Por isso, contaria ao perito uma outra versão da descoberta da obra-prima, sugerida pelo próprio Van Meegeren.
                  Boon é o advogado de uma mulher que acaba de receber a herança de seu pai, homem de negócios, francês instalado no sul da França. Sua mãe, também falecida, era de origem holandesa e no seu dote havia magnífica coleção de quadros. Em dificuldades financeiras, a herdeira desejava vender algumas dessas telas anonimamente - para não ser acusada de dilapidar a herança familiar em seu próprio benefício. Boon teria ido a seu castelo a fim de examinar a coleção. Esta, de início, o decepcionara, mas, casualmente, descobrira dentro de um grada-roupa  o Cristo de Emaús. O quadro não era do agrado do pai de sua cliente e ninguém o vira nos últimos quarenta anos. Perturbado pela beleza da obra e percebendo a assinatura, Boon resolvera consultar o especialista em Vermeer - Bredius. 


EM CADA POLEGADA, UM AUTÊNTICO VERMEER
                 No dia 30 de agosto de 1937, o dr. boon escreve a Bredius; alguns dias mais tarde os dois homens se encontram na propriedade do perito, em Mônaco. Diante da história que lhe é contada e, principalmente, diante do quadro que lhe é exibido, Bredius reage como Van Meegerem previra. O velho especialista é tomado de grande emoção; acaba de ter a sorte pela qual já não ousava esperar e vê confirmadas para sempre suas teorias sobre a obra de Vermeer. Cheio de emoção, passa dois dias examinando a tela. O tema, o estilo, a técnica, tudo no quadro o satisfaz: o pontilhado vermeeriano, a inspiração religiosa, o parentesco com a pintura de Caravágio, as personagens evocando outras figuras do mestre, a irrepreensível assinatura, a ortodoxia das cores, as fissuras, tudo faz com que fique definitivamente convencido . O entusiasmo de Bredius é tal que manda tirar uma foto do quadro e, sem maior exame, redige no verso o certificado de autenticidade:
                  - "Esta magnífica obra de Vermeer, o grande Vermeer de Delf, deixou, graças a deus, as sombras em que se encontrava há muitos anos, imaculada, intacta, como se viesse diretamente do atelier do artista. O tema representado é quase único em toda a sua obra; transmite uma profundidade de sentimento como não se pode encontrar em nenhum de seus outros trabalhos. Tive dificuldades em conter minhas emoções quando essa obra-prima pela primeira vez me foi exibida, e muitos que terão o privilégio de contemplá-la sentirão o mesmo. A composição, a expressão, a cor - tudo se junta para formar um conjunto da maior arte, da maior beleza".  - Bredius
                 A criação de Vermeer estava enriquecida de mais uma obra prima. A indiscutibilidade de tal certificado pode surpreender. Mas não acontece de outra forma. O mercado da pintura repousa sobre certezas desse gênero. Sua subjetividade logo se confunde com dinheiro (segundo uma célebre anedota, das 25.000 telas pintadas por Corot, 80.000 se encontram nos Estados Unidos...) 
                 O comércio das obras de arte constitui uma tal fonte de lucros que, a menos que exista uma dúvida imediatamente partilhada por vários especialistas, não é do interesse de ninguém desmascarar as falsificações. Qualquer quadro autenticado sem controvérsias escapa a uma análise científica (química, radiográfica, etc.) .  De qualquer modo certamente resistido a todas as provas. 
                  Munido do certificado de Bredius, Bonn regressa a Paris e guarda o quadro em lugar seguro; os cofres do Banco Credit Lyonnais. E passa a procurar um comprador, fixando o preço em 90.000 libras. É quando se manifesta a única reticência quando à legitimidade do Cristo em Emaús. O agente em Paris de Duveen, negociante de quadros de Nova York, telegrafa-lhe o seguinte no dia 4 de outubro de 1937; "VI HOJE BANCO VERMEER GRANDES DIMENSÕES CERCA 4 PÉS POR 3 CEIA CRISTO EMAUS PT PRESUMO PERTENCER COLEÇÃO PRIVADA PT AUTENTICADO POR BREDIUS QUE PREPARA ARTIGO REVISTA BURLINGTON  NOVEMBRO PT PREÇO 90 000 LIBRAS GROSSEIRA FALSIFICAÇÃO"
                   Essa mensagem discordante ficaria sem repercussão. No entanto, mesmo sem conseguir desacreditar a obra, ela retarda sensivelmente a venda.  Seria preciso esperar a publicação do elogioso artigo de Bredius na revista Burlington:
                   "É maravilhoso o momento na vida doamador de arte quando repentinamente se vê diante da obra de um grande mestre - até então desconhecida - intata em sua tela original e sem vestígios de restauração, como se acabasse justamente de sair do estúdio do autor! Nem a bela assinatura "I. V. Meer" (I.V.M dispostos em monograma), nem o pontilhado sobre o pão que Cristo abençoa seriam necessários para nos convencer de que temos aqui uma obra-prima (sinto-me tentado a dizer "A obra-prima") de Johannes Vermeer de Delf. Trata-se de um de seus quadrosde maior dimensão, uma obra totalmente diferente de todos os outros Vermeer, mas que não pode deixar de ser Vermeer em cada uma de suas polegadas". 
                    "O tema é Cristo e os discípulos em Emaús. As cores são magníficas e muito características, especialmente o admirável azul da vestimenta de cristo; o discípulo da esquerda, cujo rosto não se vê, está pintado de um delicado cinza. O outro discípulo, o da direita, está em amarelo, o amarelo do célebre Vermeer que se encontra em Dresden, mas atenuado, de modo a harmonizar-se perfeitamente com as outras cores. A serva vestida de marrom-escuro e cinza-escuro, e tem uma maravilhosa expressão. Com efeito, a expressão é a maior qualidade desse quadro único. Extraordinário é o rosto de Cristo, impregnado de serenidade e tristeza, como se pensasse em todos os sofrimentos por que Ele, Filho de Deus, passou durante Sua vida terrena; contudo é um rosto cheio de bondade. Existe qualquer coisa nele que me lembra o conhecido estudo do Museu de Brera, em Milão, considerado antigamente como um esboço de Leonardo para o Cristo da Santa Ceia. Jesus está prestes a partir o pão, nesse instante em que - como relata o Novo Testamento - os olhos dos discípulos se abriram e reconheceram Cristo ressuscitado.  O discípulo da direita, de perfil, demonstra um misto de espanto e muda oração enquanto contempla Jesus".
                    " Em nenhum outro quadro do grande mestre de Delf encontramos tal sentimento, tão profunda interpretação do texto bíblico - um sentimento tão nobremente humano, expresso com a maior arte. Quanto ao período em que Vermeer pintou essa obra-prima, creio ter sido no início de sua carreira - mais ou menos à mesma época (ou talvez um pouco mais tarde) em que pintou o célebre quadro da National Gallery de Edimburgo, Cristo de Marta e Maria. "
                    "A reprodução só pode dar uma ideia muito imperfeita do esplêndido efeito de luz obtido pela rara combinação de cores nesse admirável quadro de um dos maiores artistas da escola holandesa."


O DELÍRIO GERAL 
                  O telegrama do agente de Duveen é definitivamente esquecido. Boon pode voltar à Holanda à procura de novos compradores. O preço, contudo, cai para 58 000 libras. Desde dezembro de 1937, o maior negociante de quadros da Holanda, D. A Hoogendiijk, e diretor do Museu Boymans, dr. Hannema, especialista em exposições da obra de Vermeer, empenhava-se ativamente para restituir a seu país essa "obra-prima" do patrimônio artístico nacional". Hoogendijk um riquíssimo industrial, W. Van der Vorm, a contribuir com a maior parte do preço. O restante é integralizado pela Sociedade Rembrandt, com aprovação de todos os seus membros, bem como por alguns donativos de particulares. encabeçados por ironia - pelo próprio Bredius. O Cristo em Emaús é oferecido ao Museu Boymans, que se apressa em organizar em torno da obra uma grande exposição. 
                  Nas sombras, Van Meegeren observa o funcionamento implacável de sua máquina infernal; mistificara os peritos, petrificara os críticos, além de obter uma soma raramente alcançada por uma obra de arte. Não resta senão desfrutar a incrível admiração do público. 
                  No Museu Boymans, ultimam-se os detalhes;  antes de expor a obra é preciso prepará-la condignamente. O melhor restaurador de quadros da Holanda, Luitwieler, é chamado. Começa por colar o quadro sobre uma tela de reforço. Essa operação não pode ser feita sem o risco de destruir as provas da fraude que Van Meegeren conservara. Felizmente para ele, contrariando um hábito, Luitwieler não reforça as bordas da tela isentas de pintura. A moldura original, substituída por uma nova, não é destruída, mas cuidadosamente guardada nos porões do Museu. As restaurações, propositadamente mal feitas por Van Meegeren, são corrigidas e o quadro é novamente envernizado. A tela está pronta para a magnífica moldura, que lhe foi especialmente esculpida. 
                 Exatamente um ano depois de sua criação, o público é convidado a ir contemplara obra-prima. A exposição da primavera de 1938 é a mais memorável de todas, atraindo considerável multidão. O número de ingressos vendidos atinge uma cifra inédita. O quadro já não é mais objeto de louvores eruditos, mas de uma valorização sistemática. Os críticos exageram, cada um procurando suplantar o derradeiro elogio proferido pelos colegas. A "grande obra de arte arrancada ao esquecimento" é promovida ao posto de !maior Vermeer de Delf" e chega a ser a "revolução artística do século". O mundo inteiro é literalmente compelido a admirar incondicionalmente o quadro. 
                 Nesse ponto do delírio geral, pode-se até mesmo pensar em virtudes da paranoia. Sem dúvida alguma, os fatos ultrapassavam o próprio Van Meegeren em matéria de neurose. Satisfeito em seu desejo, o falsário pode agora se dar ao luxo de colocar publicamente em dúvida a autenticidade do Cristo.  Em várias reuniões sociais, Van Meegeren  enumera argumentos de dúvida: Vermeer teria mesmo pintado quadros bíblicos? Todos os exames científicos haviam sido realizados? A composição não seria, afinal, bastante comum? A técnica não era um tanto medíocre? Sua reputação de caluniador desacredita de antemão suas objeções e permite que seus interlocutores reafirmem as próprias convicções, refutando as razões do verdadeiro autor do motivo de seu deslumbramento. 
                 A exposição é, em si, um cenário precioso. O fausto e o aparato convenceram a multidão, tão logo penetra no Museu, de que está participando de uma cerimônia histórica e que sua emoção não pode deixar de estar à altura do acontecimento. Tapete vermelho, personalidades oficiais, fileiras de guardas em uniforme de gala; o espectador tem direito a todo esse cerimonial antes de poder, por alguns instantes lançar um olhar à obra-prima. Esta se encontra protegida por uma verdadeira guarda militar, que impede o público de se aproximar demasiadamente. Se alguém dá um passo a mais, só para observar melhoro azul vermeeriano, ou a inefável expressão de Cristo, é imediatamente reconduzido a uma distância respeitosa. Diante do espetáculo do mundo, o quadro guarda seu segredo. 
                  Van Meegeren mistura-se à multidão. Aproxima-se por sua vez. Inclina-se, quer julgar a qualidade dos recentes retoques, mas um guarda o afasta. Van Meegeren sorri. O mundo está a seus pés. 
                  Depois da consagração pública alcançada pelo Cristo em Emaús, a dificuldade de Van Meegeren estava em se manter fiel à sua disposição inicial: revelar publicamente a enormidade do embuste. Naturalmente era preciso devolver a apreciável soma que havia recebido, mas, por outro lado, a repercussão do escândalo e a consequente popularidade  de seu nome lhe dariam vantagens materiais e fama. Reconhecido como um pintor do maior talento - confundido com o próprio Vermeer - suas obras se beneficiariam do caprichoso fenômeno da moda; sua "cotação" subiria na razão direta da repercussão de sua vingança. 
                  Além disso, sua revelação o colocaria no centro de uma gigantesca controvérsia, posição das mais favoráveis - artigos, entrevistas, direitos de reprodução do Cristo e possivelmente uma autobiografia - que traria lucro e celebridade. Finalmente o quadro lhe seria devolvido; objeto de litígio e de prova, o Cristo em Emaús ainda teria seu valor.
                  Sob o ponto de vista da satisfação moral ou, quem sabe, neurótica, van Meegeren, ao revelar a verdade, colocaria o mundo da crítica, dos historiadores e dos comerciantes de arte no seu devido lugar. 
                  Mas Van Meegeren desiste de seu brilhante desfecho. Cala´se e passa a gastar o dinheiro da maneira mais inconsequente. Sua volta a Roquebrune é marcada por compras dispendiosas, noitadas alegres e encontros amorosos. Ao chegar a Paris, não tem mais condições de reembolso.  Em Roquebrune, sem outra alternativa, torna-se definitivamente um grande falsário. 
                  O O dinheiro que escorrega entre seus dedos o fascina e degrada. Sua imaginação dá sinais de fraqueza e cai ao nível da mediocridade. O homem que soube inventar o inacreditável explica sua súbita riqueza de forma absolutamente banal; teria ganho prêmio da loteria. Os habitantes de Roquebrune, seus vizinhos do cassino de Monte Carlo e a polícia local acreditam nessa história. E Van Meegeren ,de bar em bar, da roleta ao bacará, segue esbanjando dinheiro.
                  Essa brusca mudança de sua existência não desperta suspeita; os tumultuados altos e baixos, sobretudo no comportamento cotidiano, são perfeitamente naturais na vida de um artista.


OS FALSOS DE HOOGH
                   Alguns meses depois da venda do Cristo,  Van Meegeren volta ao trabalho. Continua dilapidando seus milhões; no entanto, gosta ainda de pintar. Percebe-se aí, nitidamente, um fenômeno de compensação que só pode se alimentar de novas falsificações. Van Meegeren, o pintor, não existe. Van Meegeren, o excepcional falsificador, se afirma. Pier De Hoogh é seu próximo papel. Ao contrário do que fez com Vermeer, o falsário resolve produzir agora um "autêntico" DE Hoogh. De fato, o Interior com Beberrões, inspirado nos Jogadores de Cartas, corresponde fielmente à atmosfera e ao estilo do grande pintor. 
                  No verão de 1938, a palheta e o forno de Van Meegeren produzem sua segunda obra: Interior com Beberrões  (80 x 67 cm) assinado P.D.H., 1658. A intenção do falsário é tornar perfeitamente plausível a existência de dois quadros tão manifestamente próximos um do outro, na obra de um grande mestre. Tal situação não é excepcional, quando se trata de pintores do século CVII que costumavam produzir séries de telas com temas correlatos. Van Meegeren procede da mesma maneira que um falsificador habitual. Assume, portanto, um risco diferente daquele que havia calculado com o Cristo, mas seu virtuosismo técnico protege-o de qualquer erro; Van Meegeren consegue ultrapassar-se. Seis camadas de pintura (em vez das três do Cristo) são aplicadas, e as rachaduras de "três séculos de idade" surgem artificialmente depois de numerosas  forno. Interior com Beberrões é um De Hoogh como os outros. 
                   Esse quadro entraria, depois de um ano de transações, para a coleção particular do mecenas Van Beuningen, a mais célebre e rica da Holanda, o que, por si  só, valia por um atestado de autenticidade. Ainda dessa vez, o dr Boon seria o intermediário. Para ele, a procedência dos Beberrões é a mesma do Cristo; isto é, a suposta senhora Mavroeke "vende" outro quadro de sua não menos suposta coleção italiana. 
                   Através de P. de Boer, um dos maiores negociantes de quadros da Holanda, Bonn faria Van Beuningen comprar o quadro. O montante da transação se eleva a 220.000 florins, um pouco mais do que a terça parte do preço alcançado pelo Cristo em Emaús.
                  No verão de 1938, Van Meegeren  e sua mulher Jo deixam a casa de Roquebrune e instalam-se  em Nice, onde o pintor adquire "L'Estate", uma das mais luxuosas residências do bairro de Cimez. Edificada ao pé das montanhas entre lagos, oliveiras, vinhedos e roseirais, a construção de mármore possui cinco grandes salas no andar térreo e doze dormitórios no andar superior. Numa ala separada, há uma sala de música, uma galeria e uma biblioteca que se tornou o estúdio-laboratório de van Meegeren. Tudo luxuosamente mobiliado, passa a ser cenário de recepções, festas e orgias. Nessa época, mais da metade da renda proporcionada pela venda do Cristo se evaporara. Entretanto, Van Meegeren está longe de correr o risco de ficar sem dinheiro. Assim que se instala, o falsário recomeça a pintar; está empolgado pelo próprio jogo. Daí por diante, a paixão pela fraude suplanta a vontade de afirmar o próprio gênio. A contrafação passa a ser a verdadeira obra. 
                 Interior com Jogadores de cartas (75 x 62 cm) é o segundo De Hoogh pintado por Van Meegeren e o primeiro De Hogh de Nice. Terminado nos primeiros meses de 1939, lembra o Interior Holandês,  do Metropolitan Museum de Nova York; as semelhanças são tão evidentes que este Interior com Jogadores de Cartas só poderia pertencer a uma série pintada por De Hoogh sobre o mesmo tema central. Somente mais tarde essa nova obra seria colocada em circulação. Em 1941, é finalmente vendida pela soma de 219.000 florins. Hoogendijk, o negociante que interviera na venda do Cristo, convence o rico industrial Van der Vorm a adquirir a tela. A transação se realiza através de um novo intermediário, Strijbis, agente imobiliário de Haia. 


A VOLTA A VERMEER
                Em julho de 1939, Van Meegeren endereça a Boon uma carta da maior importância, anunciando novas "descobertas":
                - "Segunda-feira passada, Mavroeke apareceu aqui em casa, trazendo cartas de sua filha, uma das quais muito importante para nós. Nessa carta escrevia que o primo de Marvroeke, Germain, que vive em um castelo no sul da França, desejava vê-la, pois estava morrendo de câncer (86 anos); Mavroeke é uma de suas herdeiras. Sua filha acrescentava que havia visto uma foto do Cristo em Emaús e desejava vender alguns quadros de sua própria coleção (creio já lhe ter falado disso). Mas ela se lembrava de ter visto, em casa de Germain, proprietário de uma coleção da mesma origem da de seu pai (a coleção que este levara consigo, ao se casar), um quadro bíblico semelhante, porém muito maior e com muito mais santos. 
               - "Terça- feira fui com Mavroeke até o lugar; procuramos durante dois dias, mas só encontramos quadros mais recentes. Até que, sábado, um dos serviçais nos disse no no sótão, havia algumas telas  enroladas. Lá descobrimos um quadro que é obra mais bela e mais importante jamais criada. Trata-se de uma Santa Ceia pintada por Johannes, muito maior e mais bela do que o quadro de Rotterdam (o Cristo). A composição, nobre e dramática,ér perturbadora - ainda mais sublime do que suas outras pinturas. É provavelmente sua última obra e etá assinada num espaço vazio sobre a mesa. As dimensões são, mais ou menos 2,70 x 1,50 cm. Depois de tornar a enrolar a tela, vagamos como loucos pela montanha. O que fazer? 
              - "Uma tela de pelo menos (aqui, uma palavra riscada). Parece-me quase impossível vendê-la, embora esteja tão perfeita quanto no momento em que foi pintada; está intacta, não foi reentelada nem emoldurada. Hesitei por muito tempo e lamentei ter de recolocá-la no lugar".
              - "Imaginei um Cristo de indescritível tristeza, com os olhos semifechados, dirigidos para além de uma taça de vinho, um São João de doçura melancólica, um Pedro - não é impossível descrever essa sinfonia da maior beleza, como nem Leonardo, nem Rembrandt, nem Velásquez pintaram". 
                 Entretanto, essa Ceia, composta por Van Meegeren em 1939, só seria conhecida depois de sua morte. As circunstâncias históricas adiaram esse projeto por várias razões. Desde a declaração da guerra, o dr Boon desaparecera literalmente, sem deixar endereço (temendo a aproximação das tropas alemães, deixara a Europa e nunca mais foi visto). A carta de Van Meegeren ficaria sem efeito, já que, seis semanas depois de tê-la escrito, o autor, acompanhado de sua mulher, deixava Nice rumo à Holanda. A guerra separava-o definitivamente da sua casa mediterrânea, onde ficaram numerosas provas para incriminá-lo, principalmente essa Santa Ceia, descoberta em 1948. 
                 De volta à Holanda, Van Meegeren está longe de se encontrar sem recursos. A venda do Cristo em Emaús e do Interior com Beberrões garante-lhe uma vida luxuosa. Inicialmente instalado em um hotel, o casal leva uma existência tão dissoluta quanto dispendiosa. Van Meegeren excede-se no gosto imoderado pelo álcool e começa a entregar-se à morfina. 
                 Em virtude das hostilidades, o retorno à França torna-se impossível. Os Van Meegeren decidem comprar uma casa na Holanda. Nas cercanias da aldeia de Laren, perto de Amsterdam, encontram uma grande residência na qual instalam um novo estúdio-laboratório. O imóvel custa muito caro, mas o falsificador guarda de reserva o Interior com os Jogadores de Cartas, que teve o cuidado de trazer consigo. A Santa Ceia fora deixada em Nice, provavelmente porque Van Meegeren não a considerava, de fato, à altura dos superlativos empregados em sua carta a Boon. Assim resolve pintar outra. 
               Uma vez construído o laboratório em Laren, inicia o Busto do Redentor, pequeno quadro (48 x 30 cm) que, à primeira vista, parece um estudo preliminar de uma composição vermeeriana bem maior. A tela permite-lhe testar seu novo forno. Embora menos perfeita do ponto de vista do envelhecimento artificial, constitui um ensaio para a criação de uma nova Santa Ceia. O rosto do Cristo, quase idêntico, seria reencontrado na falsificação que Van Meegeren pintaria imediatamente depois ( a diferença entre os dois consiste na iluminação mais forte do segundo quadro). Como no caso do Interior com Jogadores de Cartas, o falsificador utiliza Strijbis para a venda do Busto do Redentor. 
                 R. Strijbis, originário de Apeldoom, pequena cidade próxima a Deventer (ondeHan Van Meegeren nasceu e passou a juventude), é um agente imobiliário que ignora tudo sobre arte e que chega a ser indiferente em relação aos grandes mestres do século XVII. Conhece Van Meegeren desde criança e o dinheiro o atrai. Não é de estranhar que acredite sem reservasnas histórias do falsificador quanto à procedência das "obras-primas"; Van Meegeren teria supostamente comprado, de uma velha família de Haia em dificuldades, um lote de quadros do qual alguns - depois de examinados - lhe parecem de grande valor. Especialmente um De Hoogh - Interior com Jogadores de Cartas - e vários Vermeer - entre os quais o Busto do Redentor .
                  Strijbis deverá agir sem jamais mencionar o nome de Van Meegeren, já que as relações entre o pintor e os meios artísticos holandeses são deploráveis. Como pagamento, o falsificador oferece ao intermediário um sexto do produto da venda. O agente imobiliário, fascinado com as somas em jogo, logo demonstraria rara habilidade em seu novo trabalho. É elequem persuade o negociante de quadros Hoogendijk a comprar e autenticar o Interior com Jogadores de cartas e o Busto do Redentor.  Quando este quer saber de onde vem as telas, Strijbis tem suficiente autoridade para convencê-lo de que o proprietário das obras-primas faz questão absoluta de ficar no anonimato; as grandes famílias em situação desesperada preferem a discrição. 
                 Hoogendijk procura o mecenas Van Beuningen (que já possuía o Interior com Beberrões) e conclui a venda pela soma global de 475.000 florins, assim divididos:  75.000 para Hoogendijk; 70.000 para Strijbis; 330.000 para o crador da obra. O Busto do Redentor atinge esse preço astronômico porque evidentemente "saiu da mesma mão que pintou o Cristo em Emaús". 
                O aparecimento do Cristo  causara tamanho impacto que a partir de então só se pensava em Vermeer através dessa temática. Van Meegeren joga sem riscos nessa nova ilusão coletiva. A semelhança entre os Vermeer (de Van Meegeren) é tão óbvia que a autenticação é automática. 
                 Durante essa Transação, Van Meegeren  volta ao trabalho. Uma tela do século XVII, um Hondius representando uma cena de caça, adquirido alguns anos antes, servia de fundo. (Os Irmãos Douwes, seus ex-proprietários, conservavam em seus arquivos uma foto da tela.) O falsário sente-se tão seguro que toma menos cuidado na cansativa raspagem do velho quadro e deixa sob sua pintura "vermeeriana" duas camadas de tinta de Hondius. Dessa forma expõe-se a ser desmascarado na primeira radiografia eventual; os grandes mestres do século XVII, que às vezes se utilizavam de telas mais antigas, jamais escolhiam temas tão diferentes entre si. Mas van Meegeren está certo de que ninguém pensará em praticar tal perícia. 
                A segunda versão da ceia (174 x 244 cm é, por suas dimensões, sua falsificação mais audaciosa. Por outro lado, o envelhecimento artificial exige um forno gigantesco e grandes precauções na manipulação da tela. Por fim, a distribuição no espaço de treze figuras em tamanho natural apresenta um problema estético dos mais árduos, resolvido pelo virtuosismo do falso Vermeer. O falsificador continua aproveitando a impressão causada pelo Cristo, com o qual o Busto do Redentor e a Ceia se relacionam diretamente. Além disso, o rosto de São João na Ceia é sutilmente inspirado no da Jovem com Pérola  de Vermeer.
                As mesmas personagens entram em cena: Strijbis, Hoogendijk, Vam Beuningen. A transação, entretanto, se dá de mode especial. O valor chega a ser quase absurdo, já que a tela é avaliada em 1.600.000 florins, muito mais do que o Cristo em Emaús. 
                Em pagamento da Ceia, Van Beuningen dá a Hoogendiijk cinco telas de sua coleção e lhe restitui o Busto do Redentor (que comprara alguns meses antes); assim conquista a boa fé de Hoogendijk; o negociante acredita tão piamente nesses Vermeer que, ao ver a Ceia exclama: - Essa é certamente   obra mais extraordinária que existe. 
                 Guarda para a sua coleção pessoal o Busto do Redentor e paga Strijbis e van Meegeren em dinheiro. 


O MERCADO DE ARTE NA HOLANDA OCUPADA
                  Como Van Meegeren conseguiu iludir um perito, oferecendo-lhe, depois da isca (O Busto do Redentor), a obra prima (a Ceia) ?  Como, em plena guerra, era possível encontrar 1.600.000 florins? 
                   Em tempos normais, o falsificador não correria o risco de espalhar toda a sua produção no mesmo país. Teria distribuído parte em Nova York, em Londres ou Paris. A guerra o retinha na Holanda - mas esse contratempo criava, por outro lado, uma circunstância vantajosa. As negociações ficavam restritas a poucas pessoas; o intermediário, o negociante, o comprador. O público e os peritos profissionais não participavam. De fato, a obra era autenticada pelo negociante e o comprador não tinha o menor interesse em divulgar sua aquisição, pois, naquela época conturbada, as pessoas que podiam se permitir tais despesas expunham-se a ser hostilizadas por seus concidadãos. Nessas condições, a "descoberta" de um Vermeer aqui e ali era uma oportunidade muito conveniente para quem quisesse se furtar à inflação galopante. Centenas de milhões, colocados numa tela de mestre, estariam protegidos da desvalorização. 
                  O próprio Van Meegeren  não age de outro modo. Tem, contudo, a vantagem e o bom gosto de comprar obras autênticas. Legítimos Hals, Dürer, Terborgh vão aumentar o luxo de sua casa em Laren. 
                 Aos 52 anos, Van Meegren possui quatro milhões de francos provenientes de suas três últimas vendas. A cada nova tentativa, arrisca-se um pouco mais a ser desmascarado. Que importa! A paixão que o domina quia irresistivelmente sua mão. Já não existe a distância subjetiva que separa a verdade da falsificação de sua ação. 
                 A respeito de seus últimos trabalhos, chega a declarar: 
                - "Tive tanto prazer em pintá-los!  Cheguei a não ser mais senhor de mim mesmo. Não tinha mais vontade nem energia, mas era obrigado a continuar. 
                Efetivamente, uma nova tela é concluída: Isaac Abençoando jacó (125 x 115 cm). 
                Colocada á venda, a sexta falsificação encontra comprador em abril de 1942. O esquema Strijbis-Hoogendijk funciona novamente e conduz a Van der Vorm (que já possuía o Interior com Jogadores de cartas),  que concorda em pagar 1.270.000 florins por essa nova aparição de Vermeer.
                 De estrutura menos complexa do que as falsificações precedentes, Isaac Abençoando Jacó denota uma certa precipitação de Van Meegeren. Apressado por seu prazer, o falsário teria acelerado sua criação. Desse modo, passa a descuidar das etapas intermediárias do trabalho para mais rapidamente alcançar o resultado final. Sem perceber, o pintor é dominado pelo falsário que faz desaparecer em Van Meegeren os mestres que continua a revelar ao mundo. 
                 A partir do Cristo em Emaús, inicia-se um processo incontrolável do qual Van Meegeren tem consciência, conforme seu próprio depoimento:
                - "Quanto às últimas Falsificações, primeiramente não as concebi nem executei com o mesmo cuidado. (De que servia? Elas seriam vendidas de qualquer modo!) E depois, uma vez consagrada a história a respeito do Cristo em Emaús, eu sabia muito bem que em pouco tempo todos os outros quadros, dos quais, entre parênteses, não estou tão orgulhoso, seriam também reconhecidos como meus."


CRISTO, GOERING E A MULHER ADÚLTERA 
                  Ao mesmo tempo em que executa Isaac Abençoando Jacó,  Van Meegeren dedica-se a outro Vermeer, de dimensões mais reduzidas (97 x 84 cm); trabalha numa velha tela do século XVII, que representava uma cena de combate com cavalos e soldados. Essa raspagem é das mais imperfeitas. Além disso, o falsário arrisca-se audaciosamente ao empregar azul de cobalto em lugar de lápis-lazúli (o azul de cobalto não existia na época de Vermeer).  O modelo central lembra sempre o mendigo de Roquebrune; a personagem feminina é diretamente inspirada na Dama de Azul  do Rijksmuseum. Para pintar a Dama de Azul, Vermeer havia tomado como modelo sua mulher, mas o mestre de Delf não exitou em dar os mesmos traços à prostituta de A Alcoviteira. Portanto, a escolha desse rosto por Van Meegeren é de uma notável sutileza; não há nada de surpreendente que a mulher de sua nova obra seja vermeeriana.  O quadro intitula-se Cristo e a Mulher Adúltera. 
                  Para vender suas quatro últimas falsificações, Van Meegeren  utiliza os mesmos intermediários: o agente imobiliário Strijbis e o negociante Hoogendijk. Recorrer novamente a eles era perigoso. Mas encontrar um novo canal em 1942 não era fácil. O comércio de arte estava cada vez mais restrito e o falsificador precisou lançar mão de uma pessoa que não conhecia muito bem: Rienstra Van Strijvesande. Van Meegeren confia-lhe o Cristo e a Mulher Adúltera, mas depois fica sabendo que esse novo intermediário é muito ligado aos meios de ocupação nazista. Pressente imediatamente o perigo; não deseja se comprometer com o invasor, deixando um de seus falsos Vermeer partir para a Alemanha do Terceiro Reich. Insiste então que Van Srijvesande venda a obra a um comprador holandês. 
                  Mas é tarde demais. Um banqueiro da Baviera, Aloys Miedl, já ouvira falar na descoberta de um novo Vermeer. Miedl informa o dr. Walter Hofer, agente do regime nazista encarregado de recolher os tesouros artísticos dos países ocupados. Van Meegeren, a partir daí, não tem possibilidades de interferir. A transação, tramada por Strijvesande, envolve o próprio governo holandês. 
                 O preço do quadro é de 1.650.000 florins. Os alemães insistem na compra dessa "obra-prima" do patrimônio artístico holandês. Depois de curiosas e discretas negociações, a operação se realiza da seguinte maneira: em pagamento do Vermeer, o Terceiro Reich restitui à holanda duzentas telas autênticas, que haviam sido roubadas pelos nazistas durante a invasão. Seu valor global ultrapassa sensivelmente o preço da obra de Van Meegeren. O governo holandês, recuperando um patrimônio de duzentas telas de mestre, paga em dinheiro líquido a Miedi e Van Strijvesande. Este último, por sua vez, entrega a Van Meegeren cerca de quatro milhões de francos. O negócio deu certo, mas Van Meegeren não está contente. Sabe que Miedl e Walter Hofer trabalham para Hermann Goering, marechal do Terceiro Reich e colecionador de arte. Goering entra na operação como homem de Estado e como pecuniário, uma vez que destina esse quadro à sua coleção pessoal. 

UM VERMEER DECEPCIONANTE
                 Da mulher adúltera à prostituta arrependida, Van Meegeren prossegue na sua exploração vermeeriana. A inevitável ânfora de vinho reaparece no centro desse novo quadro (115 x 95 cm), em que se vê um Cristo de rosto cansado recusar, com um gesto, o alimento ambíguo que uma serva lhe apresenta; mas a mão que afasta o prato parece ter intenção de completar o gesto em direção à cabeça da prostituta.  Esta, ajoelhada, lava o pé direito de Jesus em estado de semi-êxtase; os dois fariseus, em segundo plano, são inspirados em personagens da Ceia. A evidente monotonia, a ausência de inspiração desse Lava-pés testemunham a precipitação cada vez maior do pintor. 
                A tela é colocada à venda em fins de 1942, quando as negociações relativas ao Cristo e a Mulher Adúltera estavam quase concluídas. O Lava-pés deixa a desejar do ponto de vista da realização técnica. O quadro original, de autor desconhecido do século XVII, intitulado Cavalos e Cavaleiros,  fora superficialmente raspado. A última passagem pelo forno é das mais imperfeitas; em consequência de má regulagem do aparelho, a pintura secara demasiadamente depressa e várias bolhas se formaram, destruindo parcialmente a trama de rachaduras. Van Meegeren contenta-se com restaurações grosseiras. 
                Mais uma vez, ninguém percebe nada, mesmo depois de uma perícia oficial. Van Meegeren, querendo evitar que essa nova "obra-prima¨ tome também o caminho da Alemanha, escolhe para intermediário um de seus ex-colegas de escola, Jan Kok, de Deventer. Este, menos ainda do que qualquer outro, não tem relação alguma com os meios artísticos, nem jamais ouvira falar em Vermeer... Trata-se de um ex-funcionário do governo das Índias Orientais Holandesas. O falsificador, segundo seus hábitos, convence sua nova vítima a entrar em cena. Kok procura Boer (o negociante de Amsterdam que se ocupou em 1939 do primeiro De Hoogh de Van Meegeren), que pensa, de início, que o Lava-pés  deve ser, antes de tudo, oferecido ao governo holandês - único meio de evitar que os alemães tenham conhecimento dessa nova descoberta. De Boer, portanto, passa a discutir diretamente com o Rijksmuseum.
                 Após uma série de contratos secretos entre o negociante e diversos especialistas dos museus nacionais, o governo holandês decide submeter a tela ao julgamento de um conselho de especialistas. Era a primeira vez, desde o    Cristo em Emaús, que um trabalho de Van Meegeren iria ser submetido a uma perícia. E tratava-se, tecnicamente, de sua pior falsificação. 
                 O dr. A.M. de Wild, químico; Luitwieler, restaurador de quadros; o dr. Hannema, diretor do Museu Boymans; o Dr. C.D.Roel, diretor geral do Rijksmuseum; o dr. J. Q. Van Regteren Altena, professor da Universidade de Amsterdam; o Dr. Van Schendel, conservador do Rijksmuseum; o dr. J.C. Van Gelder, professor em Utrecht e diretor do museu dessa cidade - esses homens compunham o conjunto mais infalível que se podia reunir em 1943 na Holanda. Essas personalidades examinaram o Lava Pés. Ninguém se entusiasmou com a beleza do quadro. Somente Altena chegou a afirmar que se tratava de uma falsificação. O resto do conselho estava convencido de que era um legítimo Vermeer, mesmo se esteticamente decepcionante. Em consequência, o Conselho, contra apenas um voto, decidiu-se pela compra da obra pelo Estado - a despeito de o negociante De Boer se recusar extravagantemente  a submeter o Lava-pés à radiografia! O governo pagou 1.300.000 florins. A psicose do patrimônio nacional explicava em parte essa decisão abertamente. Posteriormente o dr. Hannema declara: 
                   - Nenhum de nós apreciava muito esse quadro, mas tínhamos medo de que fosse levado para a Alemanha.     
                 Os 1.300.000 florins foram assim repartidos: 65.000 para De Boer, 80.000 para Kok, 1.155.000 para Van Meegeren. Com sua falsificação, o pintor realizava, talvez, sua mais incrível mistificação. O embuste levado ao absurdo, não seria descoberto por ninguém. 


       OS ASPECTOS DA ILUSÃO
                  Entre 1935 e 1943, Van Meegeren  realizou ao todo treze falsificações. Cinco não foram colocadas à venda. As outras oito renderam 7.254.000 florins. A relação completa de suas falsificações é a seguinte: Cristo em Emaús (115 x 127) de Vermeer, pintado em Roquebrune (1937); Interior com Beberrões (80 x 69) de De Hoogh, pintado em Roquebrune (1938); Interior com Jogadores de cartas (75 x 62) de Hoogh, pintado em Nice (1939; Busto do Redentor (48 x 30) de Vermeer, pintado em Laren (1940); a Santa Ceia (174 x 244) de Vermeer, pintado em Larem (1941); Isaac Abençoando Jacó  (125 x 115), idem (1942); Cristo e a Mulher Adúltera (97 x 84), idem (1942); Lava pés (115 x 95) idem (1943).  Quadros não vendidos: Mulher Bebendo (78 x 66) de Hals, pintado em Roquebrune (1935); Retrato de Homem (30 x 25) de Terborg, pintado em Roquebrune (1935); Dama Lendo Música (57 x 48) de Vermeer, pintado em Roquebrune  (1936); A Tocadora de Alaúde (63 x 44) de Vermeer, pintado em Roquebrune (1936); A Ceia 146 x 267 de Vermeer, pintado em Nice (1939). 
                  O produto da venda dessa obra converte-se em mais de cinquenta hotéis, outros imóveis, e em autênticas obras de arte; em 1943, Van Meegeren possui uma verdadeira coleção. Nessa época, o pintor deixa sua propriedade de Laren e muda-se para uma suntuosa casa em Amsterdam, no Keizergracht. Ali não instala um novo estúdio e abandona a pintura. A ilusão não tem mais razão de ser.


UMA SITUAÇÃO ABSURDA
                Quando, em 1945, O Cristo e a Mulher Adúltera foi descoberto em seu esconderijo,na mina de sal Alt Aussee, Austria, a primeira reação foi de júbilo: em fim essa "obra-prima" de Vermeer era recuperada. Mas a comissão artística dos aliados queria saber a todo o custo quem participou da remessa desse quadro para a Alemanha nazista. Em outras palavras, os investigadores visavam a descobrir os cidadãos holandeses que haviam sido cúmplices no tráfico de obras de arte - crime comparável à colaboração com o inimigo. 
                Naquele instante, a autenticidade do Cristo e a Mulher Adúltera não estava em questão; ninguém imaginava que essa tela pudesse ser falsa, e a investigação que se iniciava era mais política do que artística. 
                Até então, os diversos peritos, negociantes e compradores tinham-se contentado com as explicações - verossímeis, mas não desprovidas de mistério - dadas pelos intermediários do falsificador. Nos arquivos nazista foi encontrada a pista que, de Hofer e van Strijvesande, passando por Miedl (que estava foragido), levava um certo Van Meegeren - identificado como o último intermediário conhecido de uma cadeia de pessoas que estiveram envolvidas na venda do quadro. No fim de maio de 1945, os investigadores bateram à porta de Van Meegeren.
                Os dois oficiais uniformizados, que pertencem aos serviços de segurança do governo holandês, não tem nenhuma hostilidade em relação a esse artista conhecido por sua prodigalidade financeira; somente querem obter dele algumas informações confidenciais, que lhes permitiriam conhecer a origem real do Cristo e a Mulher Adúltera - informações necessárias, dada a importância da obra e o valor da transação. Van Meegeren não lhes parece suspeito de qualquer atividade ilícita. Ele simplesmente entregara o quadro a um negociante holandês que assumiu a responsabilidade de fazê-lo passar para os alemães. Ali´s, a fortuna de Van Meegeren  se explica muito naturalmente por seus negócios e pela boa administração de seus bens, sejam imóveis ou obras de arte...
                Mas Van Meegeren não quer e nem pode fornecer a menor informação sobre a velha família italiana que lhe teria cedido o Vermeer. Nervoso, convida bruscamente os dois oficiais a sair. Torna-se assim, suspeito, tanto mais que a pretensa origem italiana da obra-prima é de natureza a despertar novas desconfianças; não teria Van Meegeren se prestado a ser "agente de ligação artística" entre a Itália fascista e a Alemanha nazista? Ou talvez, se esse homem se recusava a dar explicações, não teria ele mesmo participado do roubo puro e simples da "obra-prima" de Vermeer? 
                  A história do vendedor que insistia no seu anonimato por razões de caráter familiar não era mais suficiente; um colaborador não conseguia esconder-se atrás de semelhante fábula. Repentinamente, Van Meegeren  compreende que a solidez de seus argumentos destinados ao mercado da pintura é de extrema inconsistência diante de funcionários que só aceitavam provas materiais numa investigação de caráter político.
                  Ao perguntarem se mantivera relações com os nazista, Van Meegeren responde com desdenhoso silêncio. Para os investigadores, tal atitude é intolerável e constitui menos motivo de graves suspeitas. No dia 29 de maio de 1945, Han Van Meegeren é detido e acusado de conivência com o inimigo; a sorte havia mudado. 
                  A situação toma um rumo inusitado. Um homem que, de fato, possibilitara à Holanda a recuperação de trezentas telas de mestres, autênticas (Goering havia pago desse modo o Cristo e a Mulher Adultera), era acusado de dilapidar o patrimônio artístico nacional em colaboração com o inimigo. Enquanto o quadro em questão continuasse a ser um "verdadeiro Vermeer", Van Meegeren continuaria sendo um colaborador. E a verdade pertencia somente ao falsário. 
                 Por enquanto, Van Meegeren se cala.  Fecha-se no silêncio de sua cela. Recusa-se a falar com os que o interrogam, cai num torpor e a ausência de droga (especialmente a morfina) não lhe permite tomar uma decisão. Iria permanecer isolado durante um mês e meio, numa perigosa indeterminação. Esse mutismo prolongado era para seus acusadores uma espécie de prova de culpa. 
                 No dia 12 de julho, o falsificador rompe bruscamente seus freios e lança um dilúvio de palavras misturadas com inesperados insultos: 
                 - Imbecis! Vocês são imbecis como todos os outros! Não vendi nenhum grande tesouro nacional! Eu mesmo a pintei!
                 Esta e outras tantas surpreendentes revelações confundiram completamente os investigadores.  
                  Suspeitavam-no um agente nazista e viam-se diante de um falsificador confesso. Trata-se agora de "autenticar o falsário"; tudo se modifica, e, para se resolver o problema político, são necessárias investigações no campo artístico. A enormidade das arrogantes afirmações de Van Meegeren  faz pairar uma sombra de dúvida sobre sua saúde mental. 
                Inicia-se as verificações.  Uma radiologia  do Cristo e a Mulher Adúltera permite constatar que debaixo dele havia uma cena de caça, tal como Van Meegeren indicara. Isso não constitui, entretanto, uma prova irrefutável; o próprio Van Meegeren poderia   ter radiografado a tela, e desse modo estar a par do fundo. Mas o fato era que Vermeer não teria pintado uma cena religiosa sobre uma cena de caça; além disso, essa tela era muito visivelmente obra da mesma mão que pintara os Vermeer cuja autoria Van Meegeren reivindicava.  Finalmente, a origem de todos esses quadros parecia agora absolutamente suspeita. 


UMA MENTIRA QUE DIZ A VERDADE 
                 Apesar de todos os indicadores do pintor, a polícia e os serviços de segurança(organismo paramilitar) pedem uma prova suplementar. Querem estar seguros de que Van Meegeren é capaz de imitar um mestre do século XVII. As autoridades lhe sugerem, então, que faça uma cópia do Cristo em Emaús. Isto, evidentemente, é uma prova de ingenuidade em matéria de arte; qualquer pintores profissional é capaz de executar a cópia de uma tela.
                 Van Meegeren desdenhosamente, observa a inutilidade dessa sugestão e faz uma contra-proposta. Com a condição de poder trabalhar em seu estúdio, para onde os policiais deverão trazer-lhe os materiais adequados, ele se dispõe a pintar um novo quadro de Vermeer, no mesmo estilo tão particularmente religioso que ele introduzira. 
                  Em fins de julho, em sua grande casa de Keizergracht, sob a permanente vigilância dos agentes de Segurança, Van Meegeren inicia seu último Vermeer: Cristo Adolescente Ensinando no Templo, tela de 149 x 192 cm, não menos vermeeriana do que as outras. Entretanto, os dois meses necessários para essa criação se passa em condições desfavoráveis. O estúdio está cercado de suspeição e da incompreensão dos policiais; reina um clima carregado do qual a inspiração paranoica de Van Meegeren sabe assim mesmo tirar partido; o falsificador volta a seu projeto inicial de expor seu gênio à luz do dia.
                 Desde o fim de julho, o caso Van Meegeren está nas manchetes da imprensa e toda a Holanda comenta. As polêmicas começam. Van Meegeren é um cúmplice de Goering? Não, é um gênio. Seria o autora do Cristo em Emaús e dos outros Vermeer? Sim, mas trata-se de um criador? Um falsário, um escroque? Se enganou Goering, conseguirá vencer os agentes da Segurança? 
                 Um novo Vermeer está sendo feito; há originalidade na expectativa criada. O falsificador continua, imperturbável. Um jornal anuncia: "Ele pinta por sua vida". 
                  A dificuldade para as autoridades residia em um fato bem simples: Van Meegeren não era um colaborador, grande ou pequeno, mas um falsificador de primeira importância. O caso era extremamente complexo. Juridicamente, era difícil provar sua culpa, na medida em que ele mesmo se acusava e também na medida em que os compradores das falsificações não foram os primeiros a se apresentar. O governo estava entre eles; os contribuintes vieram a saber que, em plena guerra, haviam financiado a compra bastante dispendiosa de uma falsificação. Isso significa que certo número de pessoas procedera de modo duvidoso... Autoridades ministeriais, peritos e especialistas em arte, negociantes mais ou menos honestos, todos estavam em dificuldades. Os governos não gostam de se ver envolvidos em escândalos. Era preciso ganhar tempo. Em fins de setembro de 1945, Cristo Adolescente Ensinando no Templo estava concluído. Mas eram necessários outros detalhes, outras informações, outras provas... Não havia pressa no processo Van Meegeren .
                  No dia 11 de junho de 1946, por ordem do Ministério da Justiça, uma comissão de inquérito é nomeada (composta de peritos e historiadores de arte, auxiliados por químicos). Nove meses se passaram desde a conclusão do último Vermeer. Mas o interesse do público não se arrefecia, apesar da cortina de fumaça lançada pela crítica; os figurões ridicularizados procuravam fazer esquecer sua incômoda situação. Desse modo, Deocon continuava afirmando que Emaús e a Ceia eram mesmo de Vermeer; outros sustentavam tese diferente. Mas Van Meegeren não queria ver desmentida a sua confissão e impelia a Comissão Coremans (nome de seu presidente) a agir acertadamente. 
                  Van Meegeren revela, então, aquilo que é: um paradoxo. O falsário prova que é falsário e com isso pretende provar que é gênio. Do modo mais complacente possível, coloca-se a serviço da Comissão Coremans. Fornecendo todos os detalhes de sua técnica, ajuda da melhor  maneira os químicos a descobrir as substâncias que utilizou - e que jamais alguém pensaria em investigar. Descrevendo minuciosamente as telas originais que raspou, conduz os radiologistas aos pontos em que seus vestígios poderiam ser revelados pelo raio X. Assim, desenha um esboço preciso do que resta da Ressurreição de Lázaro sob a pintura do Cristo em Emaús. os peritos da Comissão e Coremans, que leva o caso muito a sério, se convencem. Van Meegeren orienta as buscas da polícia, que descobre em sua propriedade em Nice numerosas provas materiais. 
                 Assim, ponto por ponto, a verdade do falsário é comprovada. As provas estão aí. Não se pode mais adiar o julgamento. 


A APOTEOSE
                 Na manhã de 29 de outubro de 1947, uma multidão se concentra diante das portas da quarta câmara do tribunal de Amsterdam. Da França, da Inglaterra, dos Estados Unidos, da Itália, do mundo inteiro chegam jornalistas. 
                 Acusando-se com intransigência, Van Meegeren torna difícil a possibilidade de julgamento. Quem está sendo julgado: um falsificador ou o mercado da pintura que foi enganado? Não é possível deixar de convocar os peritos infalíveis (mas que falharam), os negociantes honestos (mas comprometidos), os intermediários eficazes (mas duvidosos), os irrepreensíveis altos funcionários do governo (mas dispendiosos). Por meios legais (mas precipitados) tenta-se tirá-los do embaraço. Eles são interrogados, mas não sobre o essencial. Ao todo, dezessete testemunhas são ouvidas em apenas duas horas. Sete minutos em média para cada uma são suficientes para contornar confissões que implicariam longos depoimentos. Um tal julgamento, que normalmente se prolongaria por várias semanas, ´concluído num único dia: em cinco horas e meia, exatamente. 
                  Van Meegeren sente-se melhor do que de hábito. Sua saúde estava muito abalada, mas, naquela manhã, ele apresenta o aspecto de um homem de 58 anos em plena posse de suas capacidades. As têmporas grisalhas, o rosto altivo e marcado pelo uso de morfina, conferiam-lhe uma segurança distante. Muito bem vestido, sai de casa a pé, rumo ao tribunal, escoltado por uma multidão de jornalistas, fotógrafos e curiosos que lhe manifestam simpatia. Seus últimos anos de pesquisas e de fortunas clandestinas já não o preocupam mais; ele é o herói que não ousara ser. 
                  O tribunal está transformado em museu Van Meegeren. O magistrado V. G. A. Boll preside a sessão numa sala decorada com todas as falsificações comercializadas do pintor; o próprio retrato da rainha está coberto pela Ceia.  Há ainda uma tela de cinema para projeção de dispositivos das perícias radiográficas. 
                  Van Meegeren volta a cabeça com preocupação, senta-se, levanta-se, tia e coloca os óculos, acena para as pessoas - cada gesto é estudado; o ator tem um brilhante desempenho. Contempla com certa satisfação o conjunto de sua obra. Provoca sensação quando, às 10 horas, senta-se no banco dos réus. 
                  - O senhor é Henricus Antonius Van Meegeren? 
                  Van Meegeren concorda de bom grado. O promotor H. A. Wasselbergh lê então as acusações, entre as quais se destacam: lucros fraudulentos e falsas assinaturas "em certos quadros", com intenção de fazê-los passar por obras de outras pessoas". 
                  - Acusado, o senhor reconhece os fatos?
                  - Eu os reconheço. 
                  - Então ouçamos o testemunho dos peritos - anuncia o juiz. 
                  Toda a Comissão Coremans presta juramento. Perguntas: os quadros em causa são todos recentes e não do século XVII?  Em caso afirmativo, é Van Meegeren seu autor? Os sete especialistas respondem "sim". O dr Coremans, após a projeção das radiografias dos quadros, faz uma palestra de meia hora, demonstrando que as afirmações do falsário são rigorosamente exatas. As rachaduras (e a poeira de nanquim), as camadas de pintura, a presença de fenol-formaldeído, a moldura diminuída do Cristo, tudo é registrado, mas muito rapidamente; o julgamento não deve se eternizar e Coremans, como por acaso, tem um avião a tomar. Às 11 horas deixa o tribunal e embarca para Nova York. Suas declarações são puramente técnicas. Não falou demais e causou a van Meegeren a seguinte impressão: 
                 - Seu trabalho me parece excelente. É mesmo prodigioso. Jamais  se poderia tirar partido das falsificações como antes. Em minha opinião, um trabalho desse gênero é muito mais erudito do que... digamos, a execução do Cristo em Emaús. 
                 De Wild, o perito que recomendou a compra da Lava pés pelo governo holandês e igualmente membro da Comissão Coremans, sobe ao banco das testemunhas e declara: 
                 - Mais tarde, pude mandar radiografar o Lava Pés, e isso me levou a mudar de ideia. 
                 É preciso observar que esse "mais tarde" é dos mais enigmáticos; as radiografias só foram realizadas graças às precisas indicações de Van Meegeren. Quanto a De Wild, desafiando o ridículo. continua a elogiar o próprio trabalho: 
                  - Para mim, esses testes foram mais fáceis. Logo tive a certeza de que o acusado retirara do meu tratado sobre os métodos de Vermeer e De Hoogh a fórmula de composição de quase todas as suas cores, preparadas à maneira antiga. Mesmo algumas impurezas, que assinalei na pinturas de Vermeer, encontram-se na de Van Meegeren. (Risos na sala)  
                  Depois de Strijbis, que assegura ter sido um intermediário tao eficaz quanto inocente e "não se lembrar do montante das transações, por não ter conservado documentos", é a vez do maior negociante de quadros da Holanda, Hoogendijk. O juiz, deferente, da liberdade à testemunha, e não a submete a nenhuma pergunta embaraçosa. 
                  - Eu caí na cilada. Quando vi o Busto do Redentor, pensei imediatamente no Cristo em Emaús.  Os historiadores haviam afirmado que  o Cristo não podia ser o único quadro desse gênero. Vendi o Busto para Van Beuningen. Minha primeira impressão foi de que se tratava de um quadro extraordinário, tanto mais que estava influenciado pelo Cristo. Isso pode agora parecer incompreensível, mas, como sabem, na época tudo se fazia em segredo. Depois da Ceia, vendi dois outros, entre eles esse tão estranho Isaac Abençoando Jacó. 
                 - Como explica que o senhor tenha aceito  esse quadro? - pergunta o magistrado. 
                 - É difícil explicar. Não consigo compreender como pude me enganar a tal ponto. Mas todos nós fomos pelo mesmo caminho; caímos do Cristo à Santa ceia, da Ceia a Isaac Abençoando Jacó.  Quando os vejo hoje em dia, não compreendo como isso ocorreu. Um psicólogo poderia explicá-lo melhor do que eu. Mas a atmosfera desses tempos de guerra teve grande influência em nossa cegueira. Não devemos esquecer que o Cristo foi dado como autêntico por especialistas que gozam de reputação mundial. As falsificações posteriores eram, como elas, da mesma corrente. Por isso foram vendidas cada vez mais facilmente. Além disso, havia o desejo de manter os quadros na Holanda. 
                  Depois do depoimento de Hoogendijk, o testemunho do psicólogo Van der Horst foi o ultimo da manhã: 
                  - O caráter do acusado torna-o muito sensível à crítica, e essa suscetibilidade, exacerbada pelo complexo de vingança, explica sua atitude anti-social. Eu diria que é desequilibrado, mas plenamente responsável por seus atos. O isolamento poderia ser muito nocivo para uma tal natureza. Não aconselharia a prisão. 
                  À tarde, sete testemunhas desfilaram em uma hora, alegando que haviam sido enganadas em sua boa fé. Um incidente iria enriquecer o debate. O dr. Van Gelder, que estava envolvido na compra do Lava Pés pelo governo, vangloriava-se de um estranho pressentimento: 
                  - Não sei porque, tive o pressentimento de que todos esses quadros eram obra do acusado... Sempre tive a impressão de que van Meegeren não era muito honesto. 
                  Do banco dos réus, Van Meegeren pergunta com desprezo: 
                  - Então, o senhor sentia isso?
                  - Sim - responde Van Gelder - e os fatos me deram razão. (Risos na sala)
                  - E quando o senhor começou a sentir isso? - insiste o pintor. 
                  - Em 1942. 
                  - Chamo a atenção do tribunal para o fato de que o Lava-Pés ainda não havia sido colocado à venda. Nem existia ainda. Apesar desse feliz pressentimento, um ano depois o senhor o aceitava como um Vermeer incontestável...
                  A audiência das testemunhas está terminada. O presidente Boll dirige-se ao acusado:
                  - O senhor continua  reconhecendo que pintou essas falsificações? 
                  - Sim. 
                  - E também que as vendeu por um preço muito elevado? 
                  - Não tinha escolha; se as tivesse vendido a baixo preço estaria reconhecendo a priori que eram falsificações...
                  - Por que o senhor continuou a falsificar, depois do Cristo em Emaús? 
                  - Eu achava o método muito eficiente. Resolvi continuar, não só para realizar falsificações, mas para tirar o melhor proveito da técnica que inventei. 

                                                                        A SENTENÇA FINAL 
                  Em sua oração, o promotor diz que o magistrado denota visível indulgência para com o acusado, que se beneficia da simpatia geral. As acusações mais duras proferidas contra Van Meegeren lhe acabam sendo favoráveis e atestam a amplitude de seu empreendimento:
                  - Todo o mundo artístico está abalado e começa-se a duvidar até mesmo da validade dos julgamentos estéticos. 
                  E o promotor conclui: 
                  - A maior pena prevista pelo Código Penal é de quadro anos de prisão. Levando em consideração a saúde e a sensibilidade do acusado, o relatório psiquiátrico e algumas outras circunstâncias atenuantes,  peço ao tribunal que a pena prevista seja reduzida à metade de sua duração. 
                  Depois de um pronunciamento tão benevolente da acusação, o discurso de defesa do advogado Heldring já está feito: pede "toda a indulgência possível". 
                  O presidente pergunta ao acusado se tem alguma coisa a acrescentar. Van Meegeren, muito calmo, responde que não. A sessão é suspensa. 
                  No dia 12 de novembro de 1947, Han Van Meegeren é condenado à pena mínima de um ano de prisão. As falsificações não são destruídas, sendo restituídas a seus proprietários. 
                  No dia 26 de novembro de 1947, Han Van Meegeren dá entrada na clínica Valerium. Antes disso, assina um apelo de graça endereçado á rainha. O promotor comunica oficialmente ao advogado do pintor que o pedido será atendido. 
                  No dia 30 de dezembro de 1947, Van Meegeren morre de uma crise cardíaca. Uma pesquisa de opinião realizada no mesmo mês, apontava o homem mais popular do país: aquele que fizera explodir uma bomba no coração do mercado da pintura. 
.
NOTA FINAL
           Toda esta magnífica história é verídica;  foi extraída diretamente das notícias da época e, principalmente, do processo criminal, e teve como principal escritor o Sr. John Shawi.

Nenhum comentário:

Postar um comentário