sexta-feira, 28 de julho de 2017

A RENASCENÇA ITALIANA

                                        Uma aula fantástica do professor Paulo Villari escrita á muitos anos que aproveito minha obra sobre a  A Arte Universal para homenageá-lo e agradecê-lo. É de extrema importância para as novas gerações.
Resgatar essas obras antigas é muito importante para que as novas gerações criem uma verdadeira visão da verdadeira Renascença. Elas estarão disponibilizadas, em todo o mundo, pela maravilhosa tecnologia que hoje a internet nos permite. 

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                 Na história da literatura, a Renascença italiana é o período que começou com as obras latinas de Petrarca e se aproximava do seu fim quando vieram à luz as primeiras obras de Machiavelli e Guicciardini. Abraça uma grande parte do século XIV, todo o século XV, e tem uma grandíssima importância, porque então o pensamento, a cultura italiana sofreram uma profunda transformação; exerceram uma grandíssima influência sobre toda a Europa. 
                 À primeira vista vêem-se, porém, nela estranhas contradições. Os italianos que com a Divina Comédia, com a lírica de dante e de Petrarca, com o Decameron, tinham dado prova de grande originalidade, e se  elevaram a uma altura Verdadeiramente gloriosa, pareceram de repente com arrependidos, ARRIPIARAM caminho; pareceram desprezar aquela linguá que tinham empregado com tanta honra. Queriam escrever em latim as próprias cartas familiares; mudaram mesmo os seus nomes para tomar os dos gregos ou dos romanos. Não fizeram outra coisa senão ler, imitar, traduzir, Lívio, Tácito, Platão, Aristóteles. 
                  Ao lermos a história literária de Tiraboschi, vemos desenrolar diante de nós uma série interminável de escritores eruditos, todo aclamados, todos convencidos da sua própria grandeza; elogiam-se uns aos outros quando não tem entre si controvérsias literárias, porque então dilaceram-se sanguinosamente. Todos faziam mais ou menos a mesma coisa: traduções do grego para o latim, longas dissertações e discursos, sobretudo orações fúnebres, com citações e imitações contínuas dos antigos gregos e romanos. Pareciam florilégios formados pela união dos apontamentos que tinham tomado ao lerem os clássicos. Pensavam que era fazer-se um grande elogio dizer-se de um deles: verdadeiro macaqueador de Cícero! Quando o seu biógrafo e livreiro Vespasiano de Bisticci queria exaltar um deles até ao nais alto ponto e louvor o discurso que tinha ouvido com grande prazer, costumava exclamar:"Tem uma memória divina! Não houve autor grego ou romano que ele não recordasse naquele dia! " Até as suas epístolas, escritas geralmente para ser publicadas, eram compiladas do mesmo modo. Dizia-se mesmo que uma carta latina do secretário Coluccio Salutati valia mais para a República do que um esquadrão de cavalaria. Não há um único grande poeta prosador italiano daquele tempo que possamos citar. A própria Divina Comédia era tida  em pouca conta, porque não era escrita em latim. Acabamos, pois, por nos convencer de que se trata dum período de pedantismo e de decadência, quase duma estranha aberração do espírito italiano. 
                  Mas por que é então que de todas as partes da Europa nos veem admirar e aprender conosco? De Oxford, de Paris, de Viena veem os estrangeiros a Florença, a Roma, a Pádua, estudar com os nossos eruditos para levarem para as suas pátrias os germes fecundos da nossa erudição, que eram por toda a parte entusiasticamente escolhidos. E como foi que, quando nos fins do século XV cessa a erudição e se torna a escrever em italiano, começa de repente um outro período da literatura nacional, fecundo e verdadeiramente original?  O espírito italiano aparece então como animado duma nova vida, rejuvenescido e revigorado. Emancipa-se da peias medievais, cria a prosa científica e e ciência política. A história moderna adquire a sua forma definitiva, abandonando a forma material e mecânica da crônica. O método experimental é iniciado pelo gênio verdadeiramente portentoso de Leonardo Da Vinci. Nasce a filosofia moderna. Escreve-se o Orlando Furioso de Ariosto. 
                      É uma multidão numerosa, crescente de prosadores e de poetas, que despertam a admiração do mundo civilizado. Não falamos aqui das belas artes, que, seguindo o mesmo caminho, progrediram ao lado da literatura como manifestações do mesmo espírito nacional, e encheram o mundo de entusiasmo que continua até hoje. Deve-se concluir, pois, que este período não foi de pedantismo e decadência, mas antes de profunda transformação e de renovação. A verdade é que a erudição italiana não começou de nenhum modo em oposição aos três grandes escritores do Trecento, Dante Petrarca e Boccácio, nem intentou abandonar a via que eles tinham trilhado. De fato toram eles até que a iniciaram. Dante já era cheio de admiração pela antiguidade; Vergílio é o seu fiel guia do Inferno. É verdade que, sendo pagãos, os grandes escritores e pensadores da antiguidade são irremissivelmente condenados, mas as penas cruéis que torturaram os réprobos não lhes são aplicadas, e o Inferno transforma-se numa mansão horrorosa. No seu trato De Monarquia Dante diz que não há nas histórias de todo o mundo nenhuma que seja maior do que a da República e do império romano. A história de Roma antiga é para ele um milagre contínuo, diretamente operado pela divina Providência. Petrarca é depiis o iniciador, o fundador da educação. Ela parece brotar, como por expontânea e necessária evolução, do seio mesmo da nossa literatura nacional. É como uma nova educação, um meio empregado para transformar o espírito italiano e com ele o de toda a Europa, emancipando-o da idade média. Para fazermos uma ideia claro deste movimento, não nos devemos contentar em examinar em massa todos os eruditos; o que devemos é escolher dentre eles os que tem verdadeiramente um espírito original, e não repetem mecanicamente as ideias comuns, antes dão às suas obras um cunho próprio, obtendo resultados inesperados e novos. 
                  A poesia italiana tinha, por uma espécie de inspiração divina, emancipado o espírito humano no misticismo medieval, conduzido à observação da realidade, ao estudo da natureza, da sociedade, do homem, à fiel reprodução das suas paixões. Mas a prosa não estava ainda inteiramente formada. Não se sabia escrever a história propriamente dita. A filosofia e a ciência política não se tinham ainda podido emancipar a forma escolástica.  
                Não existia uma verdadeira linguagem científica italiana. As cartas familiares também não tinham encontrado a sua forma própria.  Quem lê o canto de Francisca de Rimini ou do conde Ugolino, crê ler uma poesia moderna, quem lê a Monarquia ou o Convito sente-se continuamente transportado à Idade Média. Era, portanto, necessário completar, generalizar a obra iniciada pela poesia. Mas então viu-se que já essa tarefa tinha sido realizada pelos antigos. Uma página de Cícero, comparada com uma de Sã Tomás parece de fato moderna. O Apolo do Belveder colocado ao pé dum Cristo de Margaritona ou de Cimabue parece a revelação da natureza, iluminada pelo sol, ao pé de convenções e combinações artificiais. Bastava então imitar os antigos. E todos os espíritos cultos se lançaram de repente nessa tarefa, com   uma avidez, com um ímpeto irresistível. Assim começou o período da erudição ou do Humanismo, que foi chamado também de Renascença, porque se ocupou em fazer renascer a antiguidade. 
     A primeira e mais imediata consequência desta imitação dos antigos foi a  observação contínua, o estudo geral da natureza, da realidade, da sociedade, do homem. O olhar volve-se de céu para a terra. Os Gregos e os Romanos não desprezavam a cidade deste mundo pela cidade de Deus, a pátria terrena pela celeste. A beleza do corpo, da natureza, admiravam-na. Não desprezavam os prazeres dos sentidos. Nas obras latinas de Petrarca prova-se dum modo verdadeiramente admirável como o estudo da antiguidade conduz ao estudo da natureza. Ele visita, observa, descreve os arrabaldes de Nápoles com Virgílio na mão que os descrevia também. Foi o primeiro que se mostrou verdadeiramente encantado com a beleza da paisagem. Demora-se a contemplar o mar em tempestade; trepa aos montes e fica encantado com a beleza da vista. A cada passo observa os costumes, as personagens mais singulares que se apresentam, e descreve-os com paixão e com precisão. É não só o primeiro erudito; mas nele se achem em germe todas as qualidades próprias dos melhore eruditos; todas as várias, multíplices tendências que depois dele terá a erudição. Combate a Idade Média em todas as suas formas. Combate a autoridade absoluta de Aristóteles, o método artificial seguido pelos médicos e pelos juristas do seu tempo. Mas tudo isto não é ainda a consequência de uma nova direção, de um novo método científico. O que ele ataca verdadeiramente é a forma escolástica, porque essa é bárbara, e ele quer a forma clássica, a única bela, a única verdadeira. 
                 Depois dele a erudição italiana devia passar do estudo da forma à emancipação do espírito humano, proceder à procura de um método, de uma ciência nova. E primeiro do que tudo, começou a formar-se, a educar-se  entre nós o espírito crítico, que se tornou o espírito do século. O estudo dos códices antigos e a necessidade de os comparar ente si, para decidir  qual era a ligação a adotar na publicação dos textos, foi o primeiro esboço da crítica. E esta crítica tornava-se ainda mais arguta quando se tratava de uma obra de Platão ou de Aristóteles , porque era necessário para uma decisão ter claro conhecimento do sistema filosófico do autor. Os eruditos estudavam pois, admiravam todos os filósofos antigos: Platão, Aristóteles, Plotino, Porfírio, Confúcio, Zoroastro. Isto trazia a necessidade de confrontar os vários sistemas, para determinar o valor relativo e escolher a solução preferível dos granes problemas que se apresentavam à mente humana. E trazia a necessidade de confiar na própria razão, que assim assumia finalmente a sua independência. Foi essa a grande conquista intelectual da Itália. Na Idade Média os problemas filosóficos eram resolvidos pela revelação, formulada pela teologia. A filosofia, serva da teologia, não devia fazer mais que expô-la, aceitando a solução já dada, explicá-la, demonstrá-la com o raciocínio ou seja com a lógica de Aristóteles, que vem a ser por isso a autoridade incontesta. A Renascença começou a afrontá-la pela primeira vez com a pura, livre razão, que tinha adquirido a plena consciência de si. Foi este o principal fundamento da nova cultura. E o processo pelo qual a Itália o descobriu, com o auxílio e o estudo da antiguidade, foi imitado por toda a Europa. Só por meio do passado a humanidade chegou à conquista do seu futuro.  
                    O primeiro que manisfestou uma verdadeira independência e originalidade filosófica, sem ser no entanto fundador dum novo sistema, foi Lourenço Valla (1405 x 1457). Há um grande conhecimento do grego que ele traduzia admiravelmente para o latim, e com uma grande elegância, unia uma sagacidade crítica bastante singular. As questões filosóficas, gramaticais e retóricas, de que muito se ocupou, mudara-se sob a sua pena em qustões lógicas, filosóficas.As leis da linguagem e da composição, dizia ele, não se podem achar, nem compreender, se não se reduzem primeiro as leis do pensamento. E assim assistimos nas suas obras ao processo pelo qual a filologia conduz à filosofia. Valla era um espírito arguto, original e mordaz, muitas vezes mesmo paradoxal. Para combater o misticismo e o ascetismo medieval, para reconhecer o valor que tem as leis e a voz da natureza, exalta no seu livro De Voluptate et vero bono os prazeres dos sentidos, chegando mesmo até à obscenidade. Combatendo asperamente os juristas do seu tempo, desencadeando uma verdadeira tempestade,   também ele como Petrarca, condena a sua bárbara forma. Para compreender a leia romanas, dizia ele, é preciso conhecer e  saber escrever bem a língua de Cícero. É absurdo pretender expô-las, comentá-las, entendê-las com a vossa linguagem. Mas não ficava por aqui, dizia ainda: "é necessário sabê-las ligar e interpretar com a história de Roma, de que as leis fazem parte, e de que elas emanam. E assim indicava já o método histórico. A sua agudez crítica manifestou-se do mesmo modo no escrito a pertença doação de Constantino. Combate-a não só a histórica e juridicamente, não reconhecendo ao Imperador o direito de alinear a terra só império, mas também filologicamente, demonstrando que o latim do pertenço documento não podia ser do tempo em que se queria fazer crer que ele tinha sido escrito. 
                 Um outro filósofo que gozou de grande fama no século XV foi Marsílio Ficínio (1433 x 1499), o fundador da Academia Platônica, o tradutor de todas as obras de Platão, que, apresar de ser a regra de São Lourenço, o admirava a ponto de ter luzes diante do seu busto. Foi autor de muitas obras filosóficas, a principal das quais queria intitular primeiro Teologia Cristã, mas depois intitulou Teologia Platônica. Essa obra devia conter todo o sistema de Ficino. Quem a lê e pensa na reputação universal de que o autor então gozava, no grande número de sábios estrangeiros que vinham de todas as partes da Europa ouvir as suas lições no Estúdio florentino, fica profundamente desiludido. Não há nesta obra nenhuma verdadeira originalidade filosófica. O autor, no fundo, não faz senão ataviar a filosofia neoplatônica de Plotino e de Porfírio. O mundo aparece-lhe povoado por "terceiras experiências" ou sejam "almas racionais", diferentes porém da alma imortal do homem, com que Deus o dotou diretamente. Essas tem ente i relações mútuas; atam umas sobre as outras, e também sobre a do homem, o que explica, segundo Ficino , as influências astrológicas, a que ele prestava grande fé. Todas essas almas da água, do ar, da terra, dos astros se reúnem depois numa única, que é como a alma racional do universo. É uma espécie de panteísmo, de que Ficino se não dava inteiramente conta, pois que ficou sempre crente e católico. Com este panteísmo, o conceito de Deus pessoal e criador  começa lentamente a transformar-se no conceito do absoluto, que cedo se acha difundido por toda a literatura italiana do tempo. 
                 Mas um caráter bastante singular e próprio desta filosofia, e que de certo modo nos explica a sua grande popularidade, era a continuada alegoria de que fazia uso. Por meio da alegoria, Ficino pretendia sustentar que entre a "terceira essência" dos astros, os deuses pagãos e os anjos havia uma grande semelhança, tão grande que podiam confundir-se. Com igual razão entre os conceitos fundamentais do cristianismo e do paganismo (à luz duma filosofia bem entendida) não havia, pois, diferença essencial.  Em Platão, na Eneida  de Virgílio, encontrava-se claramente delineados os dogmas principais do cristianismo, que as sílabas tinham profetizado. E nisto chega a um exagero que algumas vezes cai no ridículo. Mas era precisamente isto que então despertava maior admiração e lhe dava uma importância verdadeiramente histórica. Segundo o conceito teológico medieval, o paganismo, como toda a história e toda a cultura greco-romana, ficava fora do mundo verdadeiramente real, isto é, o mundo cristão. Era qualquer coisa de profano, quase diabólico, nada mais do que erro e embuste. Tudo isso se afigurava surpreendentemente desolador para aqueles que, no século XV, admiravam a antiguidade sobre todas as coisas. Ora, Ficino, por meio da sua alegoria platônica, que formava parte integralmente do seu sistema filosófico, vinha remir a antiguidade pagã, dando-lhe um lugar próprio na história do espírito humano, reconhecendo-o como uma parte essencial do nosso ser intelectual e moral. E isto parecia então uma grande revolução, que vinha estabelecer a paz, restaurar no homem a harmonia espirital. Isto implica o grande sucesso que teve o sistema de Ficino, não obstante a sua indigência filosófica.  Pico de Mirandola foi um dos seus mais ardentes campeões e propagadores, obtendo também um enorme favor.  E na verdade se, como sistema filosófico, a obra de Ficinio desapareceu sem deixar de si nenhum vestígio profundo, o seu conceito da relação histórica que existe entre a antiguidade e a sociedade moderna, sobrevive ainda, porque corresponde à realidade. E também isto foi um dos grandes serviços que a erudição italiana prestou à civilização.
                   Ente os escritores que tiveram então grande importância, são dignos de menção Poggio Bracciolini (1380 x 1459) e Leonardo Aretino (1369 x 1444), ambos secretários da República florentina. Tanto como o outro, são os dois historiadores mais célebres entre os eruditos. Bracciolini  foi sobretudo um literato, um latinista elegante; percorreu toda a Europa rebuscando códices antigos e descobriu muito deles. Nessas suas viagens descreia os costumes, os países que ia visitando. De Constança narrou minuciosamente o suplício, de que foi espectador, de Jerônimo de Praga; de Baden descreveu-lhe os banhos já estão bastante célebres, e os costumes alemães. Noutra parte da Alemanha descrevia a vida dos senhores feudais, observando como o seu arsenal e a sua adega tinham para leles o lugar que as bibliotecas tinham para os senhores italianos. Na Inglaterra fala dos longos, eternos jantares, acabados os quais se ficava ainda à mesa continuando a beber durante várias horas. Para não adormecer tinha de lavar, de vez em quando, os olhos com água fresca.Mas não se limitava só a isto, pois também observou algumas vezes as instituições com grande argúcia. Bracciolini foi talvez o primeiro que notou a grande diferença que existe entre a aristocracia inglesa e a do continente, sobretudo francesa. A aristocracia inglesa, observou ele com grande espanto, não é uma casta absolutamente separada da burguesia.  Se um banqueiro ou um industrial, depois de ter feito fortuna, se retira dos negócios, compra uma vila com um parque, e vive dos seus rendimentos no campo, é acolhido entre os nobres ingleses como um dos seus e pode facilmente aliar-se com eles pelo casamento. Isto pareia-lhe muito singular., apesar de vir de uma república democrática como Florença, que tinha destruído inteiramente o feudalismo. Nos nossos dias Tocqueville fez a mesma observação no seu l'Ancien régime et la Révolution, quando com profunda penetração, comparando a aristocracia inglesa com a francesa, projeta uma luz tão viva sobre as origens da Revolução. Esta faculdade descritiva, esta avidez observadora, eram próprias dos eruditos. Enea Sílvio Piccolomini, que foi depois o papa Pio II, não só descreve admiravelmente as paisagens italianas, como a sua descrição dos costumes de Viena são tão vivas e tão fieis que ainda hoje o guia da cidade a reedita como retrato fiel do caráter da população. 
                  Por seu lado Aretino, cujo nome era Leonardo Bruni, foi um grande  tradutor do grego, que tornou populares as obras de Platão e de Aristóteles. Também escreveu uma história de Florença desde as suas origens até 1401, e que depois foi continuada por Bracciolini. Ambos eles são os primeiros que, imitando Tito Lívio, passam da crônica à história. 
                 A obra de Aretino tem muito maior importância, porque começa nas origens da cidade, sendo ela o primeiro que põe de parte todas as lendas fabulosas que sobre elas escrevem Villani, Malespinie, os outros cronistas. Em vez disso procura nos clássicos, todas as notícias que pode encontrar sobre os Etruscos  e sobre Florença como colônia romana.  Tanto ele como Bracciolini procuram a conexão dos fatos, para dar unidade e dignidade histórica às suas narrações; mas a que eles vêem e que mostram é mais uma conexão literária que lógica de causas e efeitos. Além disto, vestem sempre as suas personagens à romana, colocando-lhes na boca discursos magniloquentes, imitados de Lívio e de Salústio. Dão a todos os acontecimentos proporções grandiosas. A guerra de Florença e de Pisa devia parecer-se com a guerra púnica, doutro modo a narração não teria tido aquela dignidade histórica que procuravam constantemente.  
                 Entre os eruditos, aquele que na verdade uniu a uma grande erudição histórica uma real penetração crítica, foi Flávio Biondo. Na história sobre a queda do Império romano e em outras de tempos mais recentes, examina as fontes, compara-as e avalia-lhes a credibilidade. Mas não conhecia o grego, não era um escritor elegante em latim. Eram este então pecados imperdoáveis num erudito italiano do século XV, e fizeram, pois, com que ele ficasse relativamente obscuro. 
                Mas para que a história moderna se pudesse efetivamente  formar, era necessário uma observação mais direta dos fatos e uma mais fiel reprodução deles, uma pesquisa das suas conexões lógicas; e era necessário que se tornasse a escrever em italiano. Para isto contribuíram muitíssimo  os embaixadores, que todos os estudos da Península tinham então em grande número, que a percorriam em todas as direções, que percorriam toda a Europa, observando com enorme penetração os homens, as instituições, os acontecimentos, as suas causas e efeitos. As cartas, os despachos que escreviam então, sobretudo os embaixadores venezianos e florentinos, formam um monumento literário, histórico e político de primeiríssima ordem. 
                   Todos esses embaixadores italianos, e especialmente os Florentinos, escreviam com uma elegância admirável. A sua língua conserva toda a vivaz espontaneidade, o aticismo da linguagem falada nas margens do Arno, linguagem tornada mais correta e gramatical pelo contínuo estudo que se fazia então do latim, e que se tinha aprendido uma construção mais harmônica, mais elaborada. Estas qualidades, junto a outras que surgiram na Itália, educadas pela erudição, foram as que produziram a literatura do século XVI e contribuíram para o seu tão grande esplendor. 
               O século XV teve também os seus poetas, que mais do que todos apressaram o regresso ao italiano na escrita. Entre eles cabe o primeiro lugar a Ângelo Poliziano (1454- 1494), inimitável pela grande elegância da forma. Nas suas elegias latinas a linguagem falada em Florença parece fundir-se de tal modo com o latim que este se transforma quase numa língua viva, dando-lhe a primitiva espontaneidade grega. E as mesmas qualidades se acham nas suas imortais Stanze italianas, que celebram a Justa de Juliano de Médicis. Não são senão um fragmento, e não se deve pretender achar nelas uma grande criação poética. O seu valor reside nas descrições admiráveis da natureza, na forma límpida, cristalina, duma incomparável. A oitava, com ele, adquiriu finalmente harmonia, cor, variedade, qualidades que nunca tinha possuído inteiramente, e que caracterizaram a literatura posterior, sobretudo a de Ariosto. 
             Mas não se deve esquecer neste ponto a Lourenço de Médicis, o grande protetor de Poliziano, e que foi dotado com os mais variados dons intelectuais. Com efeito não foi só um grande homem de estado e um grande Mecenas; mas exerceu na literatura uma influência pessoal com os seus próprios escritos. E isto sobretudo com as suas poesias italianas, em que deu prova duma grande habilidade descritiva, especialmente quando fala da vida campestre, mostrando sempre uma singular espontaneidade e elegância. A Lourenço de Médicis (1448 - 1492) se deve, em parte, o regresso à escrita em língua italiana, que com o seu exemplo pôs em honra entre os poetas nossos do seu século. 
                 Há ainda um outro poeta que viveu também na corte de Lourenço de Médicis, e com o seu poema herói-cômico, o Morgante Maggiore, foi o iniciador dum novo gênero de produções poéticas, o único gênero que pode dizer-se um produto próprio do século XV, e que todavia parece estar em direta oposição com ele. Efetivamente, o poema herói-cômico  ocupa-se das guerras religiosas contra os infiéis, que tinham ocupado os lugares santos; e a Itália do século XV, entre um tão grande fervor de estudos clássicos, no meio de tanta admiração de escritores pagãos, tinha-se tornado profundamente cética em questões religiosas. A sociedade que ali se descreve é a sociedade cavaleiresca, e a cavalaria não floresceu nunca na Itália, que tinha tomado parte pouco ativa nas Cruzadas, e no século XV tinha já destruído inteiramente o feudalismo; não se pensava senão nos Gregos e nos Romanos. 
                  Como é que no meio duma sociedade destas pode surgir um poema cujos elementos constitutivos lhe são realmente estranhos? 
                 A verdade é que o assunto desse poema não é criação italiana, mas francesa. A Itália importou-o do lado de lá dos Alpes e fê-lo seu, dando-lhe uma forma nova, sem todavia lhe alterar propriamente a substância. O que juntou de seu foi um certo sorriso irônico, que surgia espontaneamente no íntimo dos escritores, em presença dum mundo poético que lhes era a eles absolutamente estranho, demasiado fantástico para o seu espírito céptico e positivo. Mas o que juntou principalmente, e foi esse na realidade o seu mérito, foi um estudo da verdade, uma descrição da natureza, numa pintura de paixões humanas. E isto resplandecia tanto mais vivamente no meio daquele mundo fantástico, frequentes vezes vago, nebuloso e inconsistente. Aqueles homens tão verdadeiros, aquelas fisionomias tão nitidamente desenhadas, aquelas peleias pintadas com tanta vida, aquelas reproduções da natureza tão admiráveis que parecem desprender-se pela primeira vez de um caos artificial e confuso, apresentam-se aos nossos olhos como uma nova revelação do verdadeiro e do belo. Foi no poema herói-cômico a obra própria da Itália do Renascimento, e digamos que se acha em perfeita harmonia com a cultura e sociedade daquele tempo, 
                   Ao Margante Marggiore de Pulci (1432 - 1484) seguiu-se o Orlando Inamorato de  de Mateus Maria Boiardo, (1434 - 1494) em que já é bastante maior a originalidade poética, a força da fantasia, a fecundidade da imaginação. É maior porém o gosto literário, e portanto a elegância da forma, que nas obras de arte é sempre um elemento de importância vital. O seu poema foi continuado pelo Orlando Furioso, que imortalizou Ariosto, e que entra já num período novo da literatura italiana, que alguns continuam a chamar Renascença, mas que é bastante diverso do período precedente. 
                 Se fizermos agora um apanhado de tudo aquilo que temos dito, achamos que os elementos principais que se podem dizer um resultado específico da erudição italiana da Renascença são: a independência da razão; um estudo sincero, sem preconceitos, da natureza, da sociedade, do homem e das suas paixões; um espírito crítico e de livre exame; uma febre de saber; uma grande fé na força da razão; uma língua clara espontânea e correta, que o aturado estudo do latim tornou mais conexa e mais harmônica. Tais são os elementos que a Itália descobriu, e que constituíram o espírito da literatura e da cultura moderna. 
                  

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