segunda-feira, 3 de julho de 2017

A ARTE E A NATUREZA

               O primeiro caráter comum a todas as artes é de o serem ciências destinadas unicamente a dar-nos prazer...
                Essas ciências tão penosamente adquiridas, tão laboriosamente praticadas, não servem nem para tornar os homens mais sábios ou melhores, nem para socorrê-los nas suas necessidades, nem para acrescentar coisa alguma ao seu conforto; não se propõe outro fim senão o de nos ocasionar gozos de uma espécie particular, sem os quais parece que poderíamos muito bem passar, e que se afiguram mais necessários que o pão de cada dia àquele que é capaz de os sentir. Quantos adolescentes, quantos pobres diabos se abstém, se mortificam ou renunciam a jantar para ir ao teatro! As artes são ciências de luxo. É certo que a arquitetura serve para alojar os deuses e os homens; mas uma habitação sem arquitetura defende-os tão bem das intempéries como o mais belo palácio ou o templo mais artístico. Suprima todos os quadros, todas as estátuas, todos os belos versos, e não haverá por isso um grão a menos nos campos; suprima uma única indústria, e o mundo sentir-se-á atingido no seu bem estar. Mas a arte é de todos os luxos o mais estreitamente ligado à civilização; o homem que pode passar sem ela, quaisquer que sejam os requintes das suas virtudes ou dos seus vícios, é um bárbaro. 
                Qual é a natureza particular desse prazer que nós sentimos diante das criações de um grande artista? É um prazer que não tem nada de comum com o gozo dos bens sensíveis nem com os contentamentos do amor próprio ou do apetite. Pode-se gozar da obra de arte sem a possuir... Quando Pigmalião suplicou aos deuses que animassem com um sopro de vida a estátua que ele adorava, provou que não tinha olhos de artista, e que confundia os gêneros e os amores; felizmente para a sua reputação reconheceu-se que a sua história não passava de um mito.  
                Um autor antigo fala de um jovem de Cnido cuja ocupação mais querida era contemplar horas seguidas a Afrodite de Praxiteles. Julgavam-no devoto, e o que ele estava era perdidamente apaixonado. Absorvido nos seus devaneios e ora melancólico ora sorridente, murmurava baixinho frases amorosas, e ao sair do templo, gravava o nome da deusa nas paredes das casas e na casca das árvores... Enfim, atreveu-se a tudo, e escapando à vigilância dos sacristões, passou uma noite no templo. No dia seguinte ao atentado desapareceu; pretendeu-se que se tinha atirado ao mar do alto de um rochedo, onde se subverteram o seu sacrilégio e o seu nome, porque ele não é lembrado senão pelo seu crime.
                Filostrato conta uma história semelhante, mas cujo desenlace foi mais feliz. Outro Mancebo suplicara a essa mesma Afrodite que o aceitasse por noivo. Oferecia-lhe presentes a toda hora e prometia-lhe outro ainda, assegurando-lhe que a dádiva de núpcias seria digna das suas graças imortais. Os Cnidios não viam nisto nenhum mal; pensavam que a glória da deusa só podia aumentar se o universo soubesse que um rapas aspirava desposá-la. 
                O primeiro desses jovens era um libertino que merecia acabar mal; o segundo era um louco que Apolônio de Tyana curou da sua demência ameaçando-o com a sorte de Ixion. Ambos eles tinham ao mesmo tempo pecado contra o céu e cometido um atentado contra a arte, amando o mármore como se ama uma carne de mulher. 
                 O prazer estético, não sendo acompanhado de nenhuma cobiça, de nenhuma ideia de posse, é um dos mais nobres que podemos experimentar. Para admirar uma obra de arte é preciso esquecermo-nos e entregarmo-nos, e entrarmos em comunhão com quem a admira como nós; é o único amor que nenhum ciúme envenena. O rei Luis II fazia representar só para ele, num teatro vazio, as operas de que gostava. Esse doente não tinha gosto senão pelas felicidades solitárias; a própria música não lhe fazia esquecer que ele era rei, e refugiava-se no deserto para melhor sentir a sua glória. A obra de arte é um bem público; ela parece dizer: "Eu não pertenço a ninguém, ou antes, eu pertenço a toda a gente, e aquele dos meus inumeráveis proprietários que mais me possui é o que melhor soube desvelar os meus segredos."
                  As artes reduzem-se a combinações felizes de linhas e de cores, de sons ou de palavras, e quer se trate da arquitetura ou da pintura, da música ou da poesia, é pela sua forma que uma obra de arte nos agrada e nos seduz. Quem é incapaz de se apaixonar por aparências, por simulacros e de preferir de quando em quando a contemplação à posse, não saboreará jamais o prazer estético, a que certos animais, segundo parece, não são insensíveis. Tem-se vistos cobras que, com corpo estendido, a cabeça levantada, escutam uma melodia de flauta numa espécie de êxtase.  O rouxinol entusiasma-se com os seus trinados, e ainda que cante para a fêmea, está menos apaixonado por ela do que pela sua própria voz. 
                 Platão dizia que a poesia era um idílio inspirado pelas musas a uma alma simples e virgem, e está escrito no Evangelho que o reino dos céus pertence às crianças e aos que se parecem com elas. O artista é sempre uma criança e por isso vê o mundo de uma forma diferente da dos outros homens; o que os deixa indiferentes impressiona-o, o que os impressiona deixa-o frio. Basta um efeito de sombra e de luz para fazer vibrar todo o seu ser...
                Todas as artes tem ainda isto de comum; que a forma é expressiva; as aparências são sinais e tem um sentido que eu descubro instantaneamente ou que penetro por uma indução do conhecido ao desconhecido que me custa pouco esforço. Assim é que nos encontramos nesses simulacros com realidades que nos não eram estranhas ou que imaginávamos facilmente.  As alegrias austeras que a ciência nos confere são de outra ordem; ela revela-nos os princípios secretos das coisas, as leis ocultas que regem e determinam os fenômenos. A arte, rigorosamente falando, nada me ensina; não demonstra, mostra. Ao completar uma obra de arte, não adquiro conhecimentos novos, mas recordo-me e reconheço, e creio fazer o seu elogio, dizendo: 
                 - Sim, ´isso exatamente. 
                  Mas se o artista tem talento  e sabe do seu ofício, a sua cópia far-me-á ver o original melhor do que eu o tinha visto. É uma imagem que esclarece a realidade porque ela se reflete num espelho maravilhosamente límpido; a impressão que sobre mim produz já a tinha experimentado ao achar-me em presença do objeto representado; todavia parece-me que a sinto pela primeira vez, tão grande é a sua força e, por assim dizer, a sua certeza. 
                 Todas as artes são expressivas, e vão buscar todas à natureza as realidades cujas imagens nos oferecem, porque a natureza não é apenas o céu, a terra e o mar, os campos e os bosques, os rochedos, os animais e as plantas, é também a natureza humana, a nossa alma os nossos instintos, as nossas inclinações, os nossos hábitos, o destino do nosso coração, a própria sociedade em que vivemos, as suas crenças e os seus deuses, os seus usos e costumes, que se tornam para o homem uma segunda natureza. Quer o original nos agrade quer nos desagrade é sempre um gosto que lhe vemos a cópia; muitas vezes as realidades incomodam-nos ou oprimem-nos, mas uma imagem é sempre inofensiva. Todavia faz-se aqui uma distinção: à arquitetura, à música, artes simbólicas que nada imitam. diz-se, opõem-se à escultura e à pintura, que são artes imitativas.  Olhemos a questão mais de perto e reconheceremos que há uma parte de imitação na arquitetura e na música, e que nem tudo é imitação na pintura como na estatuária, que assim todas as artes tem bem um ar de família, que são verdadeiramente as espécies dum mesmo gênero. 
                  O objeto próprio da arquitetura é exprimir por aparências o destino dum edifício. Uma igreja que se assemelhe a uma igreja, uma casa de recreio que tenha o ar dum convento, uma casa burguesa construída sobre o modelo dum castelo, são contrassensos que desonram um arquiteto. É preciso que a simples vista dum edifício me diga para que é que ele serve, e se é habitado por deuses ou por homens, se esses deuses são amáveis ou terríveis, se esses homens repousam ou trabalham, se se divertem ou passam a vida a defender-se, se são burgueses ou monges, reis ou camponeses, e uma cabana que diz bem o que deve dizer, é mais uma obra de arte que um palácio que nada diz ou diz mal. Assim um arquiteto que é um artista exprime por formas o que se passa num edifício, o que nele se faz, o gênero de vida que lá se leva, a ideia que devo fazer, a impressão que devo receber. 
                   Como se haverá ele? Porque processos, por que artifícios fará falar a pedra? O método das artes simbólicas é a imitação indireta; substituem as semelhanças pelas analogias. Uma analogia é uma semelhança imperfeita entre coisas de ordem diferente. Certas impressões morais e as que nos produzem certos efeitos naturais tem entre si uma relação tão estreita que não podemos experimentar umas sem sentir as outras. Linhas retas ou curvas, linhas contínuas ou quadradas, ângulos reentrantes ou salientes, produzem em nós afeições da alma...
                  Há casa que repousam como as pessoas que as habitam, há outras que parecem trabalhar. Um edifício parece defender-se contra invisíveis inimigos ou proteger ciosamente os seus segredos contra a indiscrição dos transeuntes; outro oferece-se aos seus olhares e tem o ar de dizer: "Entrai, e vede!" Há os tão solidamente assentes que nem as mais furiosas tempestaes os poderiam danificar, tomaram posse da terra; há outros que se elevam par o céu com um foguete, como uma oração, como um desejo. 
                  Estas analogias que fornecem à arte de construir os seus meios de expressão, é a natureza que ela lhes acha o modelo. Todos os feitos que a arquitetura pode produzir sobre nós não são mais que a redução de efeitos naturais. O que é uma pirâmide? Uma caverna cavada numa montanha. O que é um templo grego com os seus pórticos e as suas colunatas? Uma reminiscência  dos bosques sagrados em que foram levantados os primeiros altares. Que sentimos nós ao penetrarmos numa catedral gótica? O frêmito que nos dá o horror divino das florestas... Numa obra de arquitetura, como em toda a obra de arte, a qualidade suprema é o divino natural. 
                  A música, é também uma arte que tem por primeiro princípio analogias naturais, e quanto mais ela as observa e as reproduz com fidelidade, tanto mais ação tem sobre nós. Há um conformidade de uma correspondências  misteriosa entre as vibrações dos corpos e do ar e as dos nossos nervos e do nosso coração. Darwin sentiu-se inclinado a crer que, antes de falar, o homem cantou como uma ave. O que é certo é que ele cantou muito cedo, porque se a inteligência fala, a paixão canta. Quer ela nos perturbe ou nos exalte, as diversas inflexões da nossa voz, o tom que se eleva ou se abaixa, à medida que se acentua, as pausas e intervalos de notas mais demoradas, buscas passagens do agudo ao grave ou do grave ao agudo, as desigualdades dum ritmo ora mais vivo ora mais lento, revelam os sentimentos que nos agitam ou nos deprimem e comunicam-os aos que nos escutam. 
                 É imitando a linguagem natural do coração humano que a música traduz em imagens sensíveis todos os mistérios da nossa alma, tudo o que se passa no mais íntimo de nós mesmos, as nossas inquietações e os nossos apaziguamentos, as nossas alegrias e as nossas tristeza, as nossas cóleras e as nossas piedades. Por uma sequência de sons que formam frases, ela refere o nascimento, o progresso, as crises de um sentimento. Pelas diversidade da medida e do ritmo, por motivos que se encadeiam ou se contrariam, por modelações imprevistas como também por repetições que se esperavam, ela exprime os movimentos rápidos ou lentos, ligados ou sacudidos duma paixão, a gravidade ou a ligeireza da sua marcha, as suas vivacidades e os seus repousos, as suas paragens e os seus prosseguimentos, os seus conflitos com outras paixões, as suas vitórias, as suas derrotas, as suas metamorfoses, as suas inconstâncias ou as suas obstinações. Pela variedade de timbres, ela dá uma idade, um sexo, uma fisionomia e mesmo uma cor. 
                  Mas ela vai mais longe ainda nas suas imitações. Os ruídos da natureza, como dissemos, tem para nós um sentido; os corpos sonoros falam-nos uma língua de sentimento diferente da nossa, mas que compreendemos ou cremos compreender. A onda que rebenta com fragor sobre a praia dá-nos parte da sua eterna inquietação; a lástima aguda da nortada diz-nos os aborrecimentos e as violências duma alma atormentada. Pelas potentes harmonias da sua orquestra, a música instrumental reproduz à sua maneira a linguagem das coisas. O que é o ruído da onda e do vento? Uma harmonia confusa. Ela desenreda essa confusão, desembrulha esse caos, faz sair dele um mundo. Não é tudo. Os nossos sentidos estão em relação constante uns com os outros, fazem-se entre eles perpétuas permutações; as percepções do ouvido transformam-se em percepções visuais, certas combinações de sons fazem-nos pensar em certas cores ou em certas formas, parece às vezes que os nossos ouvidos vêem, que os nossos olhos ouvem. Assim é que a música não só faz falar as coisas como no-las faz ver... 
                   A música imita a linguagem natural da paixão e o efeito que produzem sobre nossos sentidos e sore a nossa alma os ruídos confusos da natureza. Há nesta arte, como na arquitetura, uma verdade de imitações pela qual se reconhecemos grandes artistas. 
                  Se nas artes simbólicas, a imitação não é senão um "pouco mais ou pouco menos". o mesmo se dá com as artes imitativas. Sem falar da escultura que, exprimindo as formas, faz abstração da cor como duma qualidade desprezível, há impossibilidade física de que um pintor que possui a fundo o seu métier, de que um paisagista cuja mão seja tão sutil como seu olhar é justo e preciso, nos faça ver um cena da natureza tal como ele a vê ou nós mesmos a vimos, que atinja esse grau de semelhança que dá a ilusão... 
                 Um corpo com duas dimensões projeta nos meus dois olhos duas imagens um pouco diferentes: o meu olho esquerdo vê uma parte um pouco maior da face esquerda desse corpo, o meu olho direito uma parte maior da face direita. Graças a esta diferença das duas imagens, a visão binocular serve-me para apreciar as distâncias relativas dos objetos e a sua extensão em profundeza. Um quadro pintado numa superfície plana mostra ao meu olho direito o que mostra ao meu olho esquerdo, e segue-se então que, qualquer que seja a exatidão do quadro, a aparência dum objeto modifica-se segundo eu o vejo na natureza ou numa tela. Foi oque deu lugar à invenção do estereoscópio.  Oferecendo-nos duas imagens tomadas sob um ângulo diferente, sobrepondo-as e combinando-as para dar lugar a uma imagem única, o estereoscópio dá aos objetos que nos mostra um ar de realidade viva que não tem nunca num quadro.
                  O pintor deve renunciar também, como o notou Helmholtz, a reproduzir exatamente as cores, as luzes, as sombras naturais. 
                  "Suponha, nos diz o sábio físico, dois quadros pendurados na mesma parede, expostos à mesma luz, um dos quais representa uma caravana de Beduínos vestidos com os seus mantos brancos e de negros semi-nus, caminhando à luz ofuscante do sol da África; outro um luar azulado que se reflete na água, com grupos de árvores que a noite envolve. Nestes dois quadros, o mesmo branco, um pouco modificado, terá servido para pintar as partes mais iluminadas, o mesmo negro para representar as partes mais escuras.  Ora, segundo as medidas e os cálculos de Wollaston, a luz do sol é 800.000 vezes mais intensa que a do mais belo luar. O pintor do deserto teve de pintar os vestidos vivamente iluminados dos seus Beduínos com um branco que, no caso mais favorável, não possuirá mais do que a vigésima parte da claridade real... No segundo quadro, o pintor, para representar o disco da lua, teve de pouco mais ou menos o mesmo branco que serviu para pintar os mantos dos Beduínos, apesar da verdadeira luz não possuir senão a quinta parte dessa claridade e da sua imagem na água ter ainda muito menos ..."
                  Mas, de todas as artes, a mais imprópria é a imitação direta dos objetos visíveis e do mundo exterior é seguramente a poesia. Falamos apenas porque pensamos, e como todo o pensamento é uma abstração, como toda a palavra exprime um gênero ou uma espécie, todo o vocábulo é uma hecatombe de sensações e de coisas particulares. Ide a uma exposição de crisântemos, e tentai definir, esgotando os recursos e as miseráveis riquezas do vosso vocabulário, as nuanças quase imperceptíveis de cor de rosa, de amarelo ou de castanho que distinguem esta variedade desta outra; renunciareis dentro em breve ao vosso trabalho artístico. 
     

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