segunda-feira, 4 de setembro de 2017

A RENASCENÇA E OS LUSÍADAS

Por Ramalho Ortigão 
(Da edição de Os Lusíadas feita em 1880 pelo Gabinete Português de Literatura)  
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                    Do fundo tenebroso da Idade Média tinham saído os três fatos  fundamentais da civilização moderna: - A bússola, a imprensa e a pólvora. 
                O emprego da pólvora nas armas de fogo destitui a cavalaria suprimindo pelo tipo de bala a distância que separava a força do paladino coberto de aço da fraqueza da vilanagem leprosa, alquebrada pela fome e semi-nua.
                A bússola, determinando um ponto fixo e variável através do espaço, habilita o mareante a orientar-se nas solidões do oceano e ministra ao homem pelas viagens marítimas a posse completa do globo e a compreensão do universo, até então circunscritos, um e outro, pela teoria geocêntrica e pela lenda do Mar Tenebroso. 
                 A imprensa, soltando as idéias como um enxame luminoso e alado, preenche o mundo com uma claridade nova, e a esse fiat-lux dissipam-se para sempre as trevas da razão encarcerada na dialética sacerdotal. 
                 Da plenitude gloriosa que vem ao espírito humano dessa tríplice conquista procede essa enorme festa - a Renascença. 
                  Ao feudalismo medieval que ia suceder a monarquia sem limites. Simplificação vantajosa, porque em vez de milhares de forças e de pelourinhos  a distritos a cada senhorio, haveria uma força só à porta de El-Rei, nosso único senhor; em vez de bocas sofregas e vorazes sobre a eira, sobre os celeiros, sobre as arcas do vilão, aparecia apenas no horizonte varrido, ao longe, a mandíbula cavernosa, bocejante, profunda, mas solitária, da realeza absoluta.
                Convém não ponderar com rigor excessivo as diferenças de bem estar que caracterizam no progresso a transição duma idade que se extingue para uma idade que começa. O povo do século XVI como convalescente duma grande enfermidade, contentava-se com pouco para se locupletar na simples felicidade de viver. O povo chegava de muito longe, encanecido, macerado, faminto, meio tonto, como duma dessas longas e ásperas viagens em que se perde inteiramente o alento da luta e a esperança da volta. Ele vinha das fomes terríveis antropófagas, as mais horrendas que a humanidade padeceu desde o Império Romano.Vinha das guerras em que era uso queimar as vilas conquistadas e arrancar os olhos aos inimigos prisioneiros. Vinha das pestes devastadoras periódicas que de cinco em cinco anos sucediam às fomes e juncavam de cadáveres - hosana tremenda e lúgubre - os caminhos que conduziam os peregrinos das cidades, das vilas e das aldeias devastadas aos santuários em que se guardavam as relíquias dos santos célebres. Vinha de um clero composto daqueles bispos, de quem o próprio papa Gregório VII escrevia, que em todo o reino da França se poderia apenas encontrar um que não mereesse ser destituído pelo escândalo da sua nomeação ou pelo escândalo da sua vida, duma família em que a beleza era um pecado e a graça uma blasfêmia; a maternidade considerava-se uma forma de expiação; a mãe de Deus figurava nos altares, não como mãe, mas como  virgem; o filho era o ser condenado pela culpa original. O povo vinha ainda do terror do milênio, o cataclismo anunciado e previsto, em que a Europa se preparara para acabar com extensas procissões de penitência,gemendo e chorando, as faces cobertas pelo capuz negro dos farricocos, no delírio das visões sepulcrais. Vinha das ladainhas, dos jejuns, das flagelações da carne nas convivências místicas dum Deus desfalecido, imberbe, pregado na cruz, escorrendo lágrimas e sangue, um Deus agonizante e moribundo, um Deus de morte, bem diverso, como diz Michelet, do Ormuzd dos persas, do Jeová do judeus, do Júpiter dos gregos, deuses de barbas duras e espessas, amantes fogosos na natureza ou promotores enérgicos das atividades do homem. Vinha também da ciência esmagada nos trabalhos do judeu e do árabe, oficialmente mantida na Universidade de Paris, da qual no século XIII saíram muitos bispos, muitos cardeais e sete papas, e onde a corrupção moral tinha o seu foco na aliança da teologia com a prostituição - in una et eadem domo scholoe erant superius, prostibula inferius... merectrices publicoe ubique cleros transeuntes quasi per violentiam  pertrahebant. Vinha dos traços e das deformações da escolástica,  esse circo da ginática palavrosa. Vinha dos bruxedos e das feiticeiras. Vinha finalmente da desistência dos seus direitos comunais e da sujeição espontânea a reis que saíam a roubar às estradas com Filipe I na França; que faziam dinheiro falso como Filipe o Belo, Carlos IV e muitos outros; que eram parricidas como, nas familias do Anjo e da Normandia, os filhos de Guilherme o Conquistador e de Enrique IV; que violaram crianças, como Henrique II da Inglaterra; que assassinavam prisioneiros e roubavam náufragos como Carlos, conde de Provença, rei de Nápoles, da Sicília e de Jerusalém; que eram finalmente doidos ou ébrios com Wenceslau, filho de Carlos IV, como Ricardo II, como Pedro de Castela. 
                 No princípio do século XVI os reis, com exceção de Carlos V - Sorumbático, - padecendo de gota, - eram alegres, moços, pródigos, propensos à boa vida, aos prazeres ruidosos e festivos.  Henrique VIII, com tendência para criar ventre aos vinte e cinco anos, deixando-se levar pelas facecias do cardeal Wolsev, gostava principalmente de grandes caçadas e de boas farsas; um dia aparece de surpresa, acompanhado de treze fidalgos vestidos de pastores com estofos de cetim carmesim e ouro para jantar em casa do cardeal, que serve ao rei e aos seus companheiros de folia um banquete de duzentos manjares diversos e preciosos. De uma vez em Kenilworth as festas duram dezenove dias consecutivos. Mais tarde  as representações teatrais, os quadros mitológicos, as operas, os torneios, as procissões, as mascaradas em honra de Elizabeth e de Jacques I não tem conta. A Inglaterra grave e sisuda chama-se nesse tempo a alegre Inglaterra - Merry England.
                 Na França, Francisco I, cuja magnificência se tornoutão célebre na entrevista com Henrique VIII no Camp du drap d'or em Calais, sobe o desce as margens do Loire em excursões cinegéticas, batendo as coutadas, galopando por entre as florestas, jantando na relva em Quermesses formidáveis,  onde a comezana duma fartura flamenga põe em veia divertida a jovialidade gaulesa. 
                 Em Portugal D. Manuel, tendo contraído com as riquezas da Índia os gostos burgueses de mercador ostentoso, veste-se em cada dia com uma roupa nova, não come senão ao som das trombetas e charamelas e envia a Roma a embaixada célebre com o elefante do Ceilão coberto de xairéis  preciosos carregando o cofre em que vai encerrado o pontifical oferecido ao papa, com o cavalo persa montado pelo caçador de Ormuz, levando na garupa a onça domesticada;  mais os leopardos, mas os fidalgos vestidos de eludo e de rendas, cobertos de rubis e de aljofares nos gibões, nos chapéus e nos jaezes dos cavalos, mais os besteiros e os azeméis vestidos de seda,  conduzindo à rédea trezentas bestas; - finalmente uma vaga de ouro, de plumas, de brilhantes, de pérolas. atravessando a cidade eterna em uma pompa enorme, da qual os costumes contemporâneos permitem apenas dar ideia nos simulacros da cenografia.
                  Em Roma o próprio papa tinha a carne alegre dos sensualistas espirituosos. Leão X, da família dos Médicis, era um farsista folgazão e libertino. Assassinou de uma vez o cardeal Petrucci e gostava um pouco demais das histórias obscenas  e das comédias licenciosas, mas amava a arte e as letras. É amigo de Castiglione, do Aretino, de Rabelais. Do cofre das indulgências que vendia, como vendia os chapéus dos cardeais, pede que lhe deem 147 ducados de ouro para comprar o manuscrito do livro 33 de Tito Lívio; e quando das termas do Tido foi desenterrado o grupo Laocoonte, ele manda repicar os sinos de todas as igrejas de Roma. 
                 Nesta hora re revivescência geral um raio de sol enxuga as lágrimas vertidas pela humanidade em três séculos de superstições, de terror e de miséria. Um sorriso de bondade paira por um momento no ar. 
                 Com as novas formas sociais transformam-se rapidamente as condições da vida e os aspectos exteriores da existência. 
                 Com as viagens, com os descobrimentos, com as conquistas, estabeleceu-se o comércio e desenvolve-se a indústria. As artes ornamentais, as artes decorativas, as artes de luxo tomam um rápido incremento. 
                 Com as formas góticas acasteladas da casa feudal modificam-se as mobílias e as alfaias domésticas. Aos contrafortes e às pontes levadiças dos séculos anteriores sucedem-se os pórticos e os vestíbulos venezianos. Nascem os ornatos minuciosos de uma variedade caprichosa e delicada na arquitetura; e, dentro das casas, vulgarizam-se os grandes leitos de colunas e baldaquino, os bufês, as credências, os formosos armários esculpidos ou marchetados, que vem substituir os catres duros, os bancos de linhas ogivais e as grandes arcas da Idade Média, recamadas de ferragem, boas para arrecadar os pesados morriões e os arneses chapeados. 
                O largo e longo montante de homens de guerra é destituído pelas espada fina e leve dos cortesões. Os homens despem as pesadas armaduras de barões feudais, para se vestirem segundo as modas italianas, espanholas, francesas, de veludo e cetim, camisas de renda, sapatos bordados a ouro, e longa pluma no chapéu mole pespontado de pérolas. 
                Já não né o jogral que vai de castelo em castelo, cantar as lendas dos amores desgraçados e a história das peregrinações longínquas. Nas cortes dos novos reis são os cortesões, os cavaleiros, os fidalgos que, além das prendas de voltear a cavalo, de jogar lanças e canas ou de correr touros, se prezam de possuir o talento de trocar igualmente bem uma estocada com um homem e uma glosa com uma dama. 
                As ruas aplanam-se e alargam-se para deixarem rodar as primeira carruagens. As casas agasalham-se revestindo as janelas de caixilhos envidraçados.  Nas camas, os travesseiros de um toro de madeira são substituídos pelas almofadas, e nos utensílios domésticos principia a empregar-se o estanho e a prata. O desenvolvimento do fabrico das lãs modifica confortavelmente o vestuário e enriquece a alimentação pela abundância dos rebanhos.
                As mulheres, que no tempo do amor de Petrarca tinham apenas, como Laura, uma ou duas camisas, e que nas bodas do conde Flandres com a filha do duque de Brabante traziam ainda à cinta duas adagas e na cabeça enorme mitras, terminando um bico ou bipartidas em chifres, cultivam com esmero os requintes do vestuário; as rendas preciosas elevam-se com golas de brocado a toda a altura das cabeças; os corpetes são constelados de pedras preciosas. No guarda-roupa da rainha Elizabeth encontram-se três mil vestidos. 
                A humanidade parece retomar subitamente posse dos sentidos atrofiados no misticismo enervante e no dogmatismo absoluto da Igreja, e emergindo da vida com um deleite vitorioso, com uma sensualidade triunfal, a humanidade goza ávidamente, abundantemente. 
                Do grupo da antiguidade grega e romana, pela criação do livro impresso, pela vulgarização das obras clássicas, o homem retempera-se no espírito panteísta, e, reabrindo os olhos para a grande natureza de que estivera apartado por séculos, recomeça a compreender a vida, a interrogá-la, não já no dogma imposto pela revelação, mas no fenômeno diretamente observado; principia a amar a beleza, a estimar a força, e a sentir em si mesmo, na profundidade do seu ser, a palpitação dessas novas energias que vão reconstituir o mundo moral e que se chamam o amor, a paixão, o entusiasmo, o desinteresse, o delicado gozo da arte e a estimulante curiosidade da ciência. 
                 A evolução retrospectiva para a antiguidade sábia inunda os espíritos com clarões inesperados. A velha religião politeísta dá o exemplo de uma tolerância ingenuamente bondosa e magnânima; o Panteon romano recolhe todos os deuses, incluindo os dos vencidos; Atenas adora todas as divindades, até as desconhecidas, para que lhe não esqueça nenhuma; e, se os imperadores perseguem os cristãos, é porque eles atentam não contra as crenças do povo, mas contra a segurança do Estado. A velha poesia rediviva cessa de falar das flagelações e das penitências dos santos ascetas, emagrecidos e chagosos, preparando-se para a morte numa vida de lágrimas, de açoites, de preces e de imundícia. A arte ressuscitada celebra o homem forte, são,   vigoroso e bom, a carne firme e a terra dadivosa e amiga, onde as douradas abelhas de Lucrécio zumbem ao sol sobre as vinhas maduras de Virgílio. Os heróis das antigas legendas são bravos e ingênuos, violentos e doces. 
                Na Ilíada é o furioso Aquiles, vestindo as armas e saindo da tenda em que obstinadamente se encerrara para cumprir o mais humano e o mais trono dos deveres, - para vingar a morte do seu amigo Patrocolo, jogando aos cães o cadáver de Heitor. 
                 Na Eneida é o piedoso herói partindo de Tróia com a espada em punho, seguido de sua mulher Creusa, levando aos ombros o seu velho pai Anchises e pela mão o seu filho Ascânio.
                 Na obra de Eschilo é Prometeu sacrificando-se pela humanidade, dando-lhe o fogo, ensinando-lhe as artes, e, depois de acorrentado ao rochedo no alto da montanha, lentamente devorado pelos abutres em satisfação do castigo mandado por Júpiter, arrostando face a face, inflexivelmente, com a própria divindade, - firme na consciência do dever cumprido perante os homens. 
                Em Sófocles é Teceu estabelecendo o princípio da fraternidade e da solidariedade humana ao receber o infeliz Édipo com esta frase: "Nunca recusarei socorrer um estrangeiro desgraçado; sei que sou como tu um homem."  
                É em Aristófanes o próprio poeta lastimando no teatro diante do povo de Atenas a morte de Fídias, acusado de impiedade, e dizendo que com ele morrerá a paz, tão bela pela sua aliança com a arte em que era mestre o grande escultor. 
                E os autores dessas obras imortais, brasão eterno do gênio do homem, não eram pacientes monges solitários, foragidos da convivência das gentes e soterrados vivos no interior das suas celas entre os manuscritos das revelações divinas e das metafísicas aristotélicas; eram cidadãos que discutiam nas assembleias e nas praças públicas os interesses da República; que se batiam nas batalhas como Eschilo ou nos jogos do circo como Eurípedes; que perante os triunfos da pátria dançavam em torno dos troféus da vitória em corpo nu e perfumado, como Sófocles depois da batalha de Salamina. 
               Ao passo que a poesia despertava essas nobres e soberbas aspirações, a escultura pagã, desenterrada dos esconderijos a que condenara a Igreja, revelava a graça e a expressão da linha dos mármores do Pártenon e do Fórum, nas formas perfeitas dos deuses, das ninfas, dos gladiadores e dos atletas. 
                Na ciência dava-se um igual impulso à renovação mental com a medicina de Hipócrates, com a geografia de Estrabão e de Ptolomeu, com a botânica de Dioscorido, com a filosofia de Platão. 
                Um grande número de editores de Parma, em Veneza, em Florença, em Leipzig, em Koenigsberg, na Itália, na Alemanha, na Suíça, multiplicam os exemplares de estudo e facilitam a circulação literária, abandonando o infólio e adotando o formato em 8°, introduzido por Alde em 1500. 
                O latim clássico dos oradores, dos poetas, dos historiadores, dos naturalistas, limpa por toda a parte o latim bárbaro dos monges. 
                As línguas sábias, não somente a latina, mas a grega e ainda a hebraica, são lida e faladas, em todas as escolas e em todas as cortes em que se presa a cultura da inteligência, pelos homens e pelas mulheres, para quem a erudição clássica se considera um característico da fidalguia. 
                 Na Inglaterra, a duquesa de Norfolk, a condessa de Arundel, Joana Grey conversam em latim, analisam Cicero e discutem Platão.  
                 Na França, Francisco I humilhado na sua ignorância, encarrega um mestre de lhe ensinar rapidamente, dentro de um mês, o latim e o grego; funda o Colégio de França, onde essas duas línguas, assim como o hebraico, se ensinam gratuitamente; e inspirado da Paixam de Petrarca, manda restaurar em Avinhão o túmulo de Laura, e põe ele mesmo em versos, ainda que maus, a história dos seus amores e do seu cativeiro. 
                 Na Itália todas as cortes, Ferrara, Milão, Mântua, Bolonha, pleiteiam entre si a glória de proteger as letras.  Os Médicis, mercadores, literatos, artistas, favorecem igualmente a navegação, os trabalhos filosóficos e os monumentos de arte. Em Florença e em Piza, a biblioteca médico-laurentina é fundada por iniciativa de Cosme e de Lourenço o Magnífico. Funda-se igualmente a Academia da Crusca e  restaura-se a universidade de Pávia. A lingua grega é ensinada em Florença e em outras cidades, onde a presença de vários sábios bizantinos facilita à Europa os estudos do helenismo. 
                 Na Espanha é certo que Fernando de Castela sabe apenas assinar o seu nome, mas a rainha Isabel lê corretamente os autores latinos. 
                 Margarida da Áustria e Margarida de York, as primeiras preceptoras de Carlos V, tem com ele a mais esmerada educação literária. 
                Os administradores da Suécia, no último quarteirão do século XV, fundam a universidade de Upsala ao mesmo tempo que o rei da Dinamarca institui a universidade de Copenhague.
                Na Rússia Ivan III convida e retem violentamente, dentro dos seus domínios, os artistas gregos e italianos. 
                Na Hungria, Matias Corvino, ao mesmo tempo que bate com a sua guarda negra os janízaros de Maomé II, funda uma universidade, duas academias, uma grande biblioteca, um museu e um observatório. 
                Na Alemanha, desde 1409 até 1538, fundam-se treze universidades, sendo a primeira a de Leipsig e a última a de Estrasburgo. Muitas escolas de menor importância a várias congregações científicas, como a sociedade Rhenana e a sociedade de Estrasburgo, estabelecem-se para fundar o humanismo. Os professores e os sábios comunicam-se, viajam, empregam todos os meios de ampliar a sua esfera de ação e, tendo à frente desse movimento Erasmo, o sarcástico demolidor, despossam o clero do monopólio das letras. 
                Fundada em tais alicerces, a Renascença toma rapidamente o caráter de um fato literário, e de um fato artístico assombroso e incomparável. 
                Homens verdadeiramente extraordinários e capitães como nunca mais a história tornou a ver reunidos, haviam nascido sucessivamente como preparação da nova mentalidade. E Colombo em 1436, Leonardo Da Vinci em 1452, Erasmo em 1467, Copérnico em 1473, Miguel Ângelo em 1472, Lutero em 1483, Rabelais em 1495. 
                O novo mundo descoberto por Colombo, além das contribuições científicas trazidas à astronomia, à botânica, à zoologia, a todas as ciências da natureza, transforma as condições econômicas e domésticas da sociedade européia pela importação dos metais preciosos e dos novos produtos alimentícios, pela introdução do açúcar, do tabaco, da batata, do café. 
                Leonardo Da Vinci, matemático, físico, engenheiro, escultor, pintor, literato, poeta, moralista, músico, é a mais poderosa imagem do enciclopedismo, que foi a alma da Renascença, assim como mais tarde devia ser a base da moderna filosofia. Leonardo Da Vinci é principal inciador dos progressos do espírito no seu século. Ele foi, em maior ou menor escala, o mestre de Miguel Ângelo, de Rafael, de Corréggio, de galileu, de Kepler, de Copérnico. 
               Pinta aCeia e a Jacunda; reúne o canal de Marfetana e o de Tessim; talha a estátua equestre de Sforza; anuncia os mais importantes fatos da astronomia, da geologia, da mecânica, e prevê p termômetro, o barômetro e a máquina de vapor. 
               A obra de Erasmo morreu cedo porque lhe faltavam os dois principais elementos que fazem viver os livros na estima dos povos, - primeiro: o culto nacional da língua; segundo: o cunho que imprime no produto artístico a superioridade pessoal do autor. Erasmo escrevia numa língua neutra - o latim, e tinha o coração duro, inacessível aos grandes entusiasmos desinteressados e às nossas compaixões incondicionais e absolutas. Pequeno e débil do corpoe da alma, e educado no convento, conservou em toda a sua vida a timidez do seminarista e o egoísmo do valetudinário. O seu ódio à demagogia é um reflexo da sua indiferença pela sorte dos oprimidos. A posteridade puniu-o com o desdém. No seu tempo, porém, a obra de Erasmo, tão, tão volumosa como a de Voltaire, teve uma influência benéfica e decisiva na formação e na educação dos espíritos. Pelo livro intitulado Os adágios, em que ele coligiu e comentou os provérbios latinos, gregos e hebraicos, Erasmo funda as bases das literaturas modernas na tradição e no bom senso popular. Pelas suas obras de educação, de crítica, de controvérsia religiosa e de polêmica literária, pela publicação da suas gramáticas, dos seus dicionários, das suas traduções, dos seus tratado, pelo Elogio da Loucura e pelos Colóquios, que saiam à luz disgregadamente  e sucessivamente à maneira de uma revista periódica, Erasmo, trabalhador assombroso, contribuía mais que ninguém para espalhar ideias, para vulgarizar noções, para suscitar teorias, para alargar finalmente os domínios da inteligência e para fundar a independência intelectual e a liberdade de pensamento. 
               Lutero é ao mesmo tempo o cataclismo destruidor do velho mundo pensante e a célula primeira do novo organismo social. Queimando publicamente em Wittemberg a bula papal que o condenava, refutando a tradição e o princípio da autoridade, os jejuns, o purgatório, os votos monásticos, o celibato eclesiástico, que era uma amputação, as indulgências, que eram uma mancomunação no crime para a venda do perdão.  Lutero destrói, num ímpeto de rebeldia sacrílega todas as crenças que constituíam a alma da Idade Média. Derrubando os tribunais eclesiásticos, prepara a distinção do poder civil e do poder religioso. Desobedecendo e revoltando-se com uma irreverência heroica, funda a liberdade do pensamento e abre pela livre investigação e pelo livre exame o caminho da ciência. No seu lar doméstico, na convivência da sua mulher e dos seus filhos, no seu jardim, que ele próprio agriculta, à sua mesa ridente e hospitaleira, onde ele ergue cantando a grande taça da amizade transbordando o vinho, esse poderoso temperamento de combate e de vitória, tão expressivamente acusado nos retratos feitos por Holbein e por Granacho, - com a boca cheia de força e de riso, com os olhos penetrantes, com um pescoço bovino, com bíceps atléticos, - dá pela primeira vez ao mundo o exemplo da alegria raciocinada e convicta do homem são. Pela sua maneira de tratar os papas e os reis, todos os grandes e todos os poderosos, ele estabelece para os humildes esta força nova - sem cerimônia. Pela sua destreza em manejar a verdade, cria uma religião. Pela sua profundidade em interrogar os corações que padecem, ele presta à humanidade um maior serviço que o de dar-lhe uma nova seita; dá-lhe uma nova arte. A música moderna foi ele que a criou. Até então o homem em comunidade sabia apenas rezar. Quem primeiro nos ensinou o canto foi Lutero. Os seus hinos, inspirados nas mais ingênuas canções do povo, tem a larga vibração elegíaca e profunda de um grito supremo da humanidade. Na alma popular essa música opera como o bálsamo da consolação infinita.  Na Holanda, quando ao levantar-se o cerco de Leyden pelo duque de Alva, o povo se reúne no templo para entoar o coral de Lutero, a grande multidão dilacerada pelas resistências do assédio e pelas devastações da fome, esquece-se da sua própria dor perante a sublime e dominante majestade do cântico que a exprime, e a comoção é tão profunda que, ao cado dos primeiros compassos as vozes não podem continuar e hino, e, entrecortada de soluços há uma pausa solene, em que, para glória da arte, as doces lágrimas da poesia borbulhando nos corações cicatrizam a chaga aberta pelas lágrimas corrosivas da desgraça. Um dos primeiros mestres da música moderna - Meyerbeer - ressuscitou-os na sua obra, os hinos de Lutero.  Todos que ouvimos o grande coral de Huguenotes e o coro do terceiro ato do Profeta sabemos oque se deve em gratidão a Lutero artista, como consolador benéfico das magoas do nosso coração e como suscitador fecundo das energias do nosso cérebro. 
                 A alegria, essa grande força da alma que Michelet considera a quarta virtude divina, que faltou aos santos taciturnos do catolicismo, tornando-os assim defeituosos e bastardos, igualmente incompatíveis com a agremiação dos homens e com a parceria dos anjos, a alegria, de que Lutero é a expressão pessoal, toma em Rebelais a forma épica. Sem a alegria a humanidade não compreende a simpatia nem o amor. Para estimar os santos do cristianismo o povo empresta-lhes a alegria que eles não tem, e faz do soturno asceta S. João o bom farsista amigo dos namorados, ajudando-o a quebrar bilhas e a furtar beijos às lindas raparigas que vão à fonte. 
                 Entre os nossos voos espirituais, Lutero foi o primeiro contente que cantou, Rabelais foi o primeiro contente que riu de todo o riso truncado através da Idade Média nos fabliaux  e nos vilhancicos, e, ao ribombo formidável da gargalhada de Pantagruel, estremesse desencasando-se dos gonzos a velha caixilharia de todo o edifício social.  Rabelais ri, porque se tem a fé na ciência que aprendeu, como médico, com Hipócrates e Galeno, como humanista, com Sócrates e Platão; porque tem caridade manifesta do seu amor dos pequenos e na sua aversão aos tiranos; porque tem a esperança posta no progresso acelerado pela sua própria obra, da qual ele mesmo diz: - bon espoir y git au fond. O que distingue Rabelais  de Aristófanes é, como nota Littré que o cômico da Grécia assim como Tácito em Roma, previa a próxima invasão dos bárbaros e a ruína de um mundo condenado; por essa razão Aristófanes, não vendo no futuro senão o aniquilamento social, defende obstinadamente o passado contra as inovações temerárias de Sócrates. Rabelais, pelo contrário, sente palpitar em si a alma da Renascença, presente no mundo novo, e, zombando de tudo, só não zomba da filosofia porque antevê nos triunfos da ciência o futuro resgate do homem. Pelo seu poder demolidor porque as risadas rabelaisianas soam em torno de todas as velhas superstições, como as trombetas de Josué em volta dos muros de Jericó - Rabelais é o precursor da Revolução Francesa. Pela sua sistematização filosófica, pelo seu plano de estudos na educação de Pantagruel, na qual os conhecimentos biológicos aparecem pela primeira vez, ha trezentos anos! como a base da ciência política, Rabelais é o precursor do positivismo na parte mais indiscutida do sistema de Comte; a determinação do método pela classificação genealógica das ciências. A reforma religiosa não produziu senão desunião e discórdia na família humana. A reforma filosófica de Rabelais, se houvesse sido compreendida, teria eliminado o luteranismo e calvinismo, teria suprimido as guerras religiosas e fundado a concórdia humana na tolerância e  na justiça. Com todos os semeadores de grandes idéias, Rabelais não pode ver frutificar a sua obra, mas a semente da reconstituição filosófica do mundo moderno estava lançada à terra desde que fora concebida e epopeia pantagruélica. 
                  A tão poderosos elementos de renovação moral e de renovação artística, a influência de Miguel Ângelo, de Corréggio  e de Rafael acrescenta três poderes novos. Rafaerl ensina a exprimir a beleza; Corrégio a graça; Miguel Ângelo a força. 
                 O movimento artístico toma as mais grandiosas proporções. Levanta-se a basílica de São Pedro. Pinta-se a capela Sistinae pintam-se as estâncias do Vaticano. Principia-se o Louvre e as Tulherias. Edificam-se, na França, ps palácios de Saint-Germain, de de Fontainebleau e de Chambord. Controem-se em Florença o palácio Pitti; e em Gênova, e em Veneza abrem-se os suntuosos vestíbulos e erguem-se os elegantes pórticos do novo estilo.  Ghiberti cinzela na França as portas de bronze do Batistério de S. João, a mais admirável obra da escultura  moderna. Donatelo levanta a estátua de S. Marcos. Luca della Róbia inventa as terre cotte. Finiguerra acha a gravura em cobre. Ticiano, o príncipe dos coloristas, eleva a pintura do retrato a um esplendor que nunca mais se excedeu.  Alberto Durer e Raimondi põem em voga a gravura. Benvenuto Cellini funda a ourivesaria artística. Em Veneza aparecem Tintureto e Paulo Veronez, em Florença André del Sarto, em Roma Júlio Romano, na Holanda Rubens, na Alemanha Holbein.  Na música nasce Luis Seufl, amigo e condiscípulo de Lutero, e Palestrina, o criador do canto fermo; na Antuérpia fabrica-se o primeiro cravo de quatro oitavas com duas cordas para cada nota, ao passo que a antiga viola dos menestréis, por meio do apenso de uma nova corda, se converte na rebeca, principal instrumento das orquestras modernas. 
                 Na ciência, Tartáglia e Ferrari descobrem novas fórmulas para resolver as equações do terceiro e do quatro grau. Viète aplica pela primeira vez a álgebra à geometria. Copérnico e Kepler estabelecem as verdadeiras leis do sistema do mundo, e juntamente com Sturn e Campanella destroem pelos fundamentos a autoridade de Aristóteles. Vesale e Servet criam a anatomia humana e fazem dela a base da medicina e da cirurgia. Machiavel empreende a história crítica da política. Montaigne metodiza a dúvida convertendo-a num dos mais fortes instrumentos de verdade, e dá o primeiro exemplo da indiferença religiosa, penhor da pacificação das consciências pela filosofia. 
                 O direito romano, ressuscitado pelos juristas franceses, inglêses e italianos, regulariza a legislação européia e opõe a liberdade civil da antiga Roma à tirania religiosa da Roma pontifícia. 
                 A filosofia de Platão, substituindo a dos peripatéticos pelos estudos da Mirandola, de Paracelso, de Fludd, de Zorzi, produz um maior benefício que o de aliar a tradição cristã com o espírito da antiguidade. O neoplatonismo fecunda a poesia renovando-a inteiramente pela análise psicológica, dando ao poeta a faculdade de especular com as próprias comoções e criando a arte lírica por esse poder de subjetividade que produziu a obra de Petrarca e inspirou Goethe o conhecido aforismo: Se a tua dor te aflige faze dela um poema. 


*    *    *
BIOGRAFIA 
                 José Duarte Ramalho Ortigão, escritor e crítico português, nasceu no Porto em 1837 oriundo duma família nobre do Algarve. Quando acabou os seus estudos dedicou-se ao magistério e entrou para a redação do Jornal do Porto, onde teve as seções noticiosa e do folhetim.  Nomeado em 1869 oficial da Secretaria da Academia Real das ciências, nesse ano veio para Lisboa fazendo parte dos juris de exame nos liceus. Colaborou em vários jornais do país e do Brasil; em 1871 fundou com Eça de Queiroz as Farpas cronicas mensais de crítica, endo escrito ainda com o mesmo escritor Mistério da Estrada de Cintra Para o Diário de Notícias, artigos que fizeram uma grande impressão por se julgar, a princípio, que se tratava dum caso real. Entre várias obras que publicou, devem citar-se: Literatura de hoje, 1866; Em Paris, 1868; Histórias cor de Rosa, 1870; Notas de viagem, 1878; As Praias de Portugal, 1876; A Instrução Secundária na Câmara dos Senhores Deputados, 1883; A Holanda, 1885; etc.  Das Farpas só os primeiros 15  números pertencem aos dois escritores; os restantes foram todos escritos por Ramalho.  Do Mistério da estrada de Cintra fizeram-se duas edições, uma e, 1871 e a outra em 1885. 
Nicéas Romeo Zanchett. 

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

A ARTE - (De O Riso)

Henrique Bergson 
                  
                 Qual é o objetivo da arte? Se a realidade viesse impressionar diretamente os nossos sentidos e a nossa consciência, se pudéssemos entrar  em comunicação imediata com as coisas e conosco mesmos, creio bem que a arte seria inútil, ou antes que nós seríamos artistas, porque a nossa alma vibrará então continuamente em uníssono com a natureza. Os nossos olhos, auxiliados pela nossa memória, recortariam no espaço e fixariam no tempo quadros inimitáveis. O nosso olhar aprenderia na passagem, esculpidos no mármore vivo do corpo humano, fragmentos de estátua, tão belos como os da estatuaria antiga. Ouviríamos cantar no fundo das nossas almas, como uma música algumas vezes alegres, a maior parte das vezes melancólica, sempre original, a melodia ininterrupta da nossa vida interior.  Tudo isso está em torno de nós, tudo isso está em nós, e todavia, nada de tudo isso é o apercebido por nós distintamente. Entre a natureza e nós mesmos, que digo? entre nós e a nossa própria consciência, um véu se interpõe, véu espesso para o comum dos homens, véu ligeiro, quase transparente, para o artista e para o poeta. Que fada teceu esse véu? Foi por malícia ou por amizade? Era preciso viver, e a vida exige que aprendamos as coisas na relação que elas tem com as nossas necessidade. Viver consiste em agir. Viver é não aceitar dos objetos senão a impressão útil para responder a eles por reações apropriadas; as outras impressões devem obscurecer-se ou não chegar até nós senão confusamente. Eu olho e creio ver, escuto e creio ouvir, estudo-me e creio ler no fundo do meu coração. Mas o que eu vejo e o que eu ouço do mundo exterior é simplesmente o que os meus sentidos dele extraem  para esclarecer a minha conduta; o que conheço de mim mesmo é o que aflora à superfície, o que toma parte na ação. Os meus sentidos e a minha consciência não me exibem da realidade, senão uma simplificação prática.Na visão que me dão das coisas e de mim mesmo, as diferenças inúteis ao homem apagam-se, as semelhanças úteis ao homem acentuam-se, caminhos me são traçados de antemão em que a minha ação se internará. Estes caminhos são aqueles em que a humanidade inteira passou antes de mim. As coisas foram classificadas em vista do partido que se poderia tirar delas. E é esta classificação que eu apercebo, muito mais do que a cor e do que a forma das coisas. Sem dúvida o homem é já muito superior ao animal nesse ponto. É pouco provável que o olho do lobo estabeleça qualquer diferença entre o cabrito e o cordeiro; são para o lobo duas presas idênticas, sendo igualmente fáceis de apanhar, igualmente boas para comer. Nó é que fazemos uma certa diferença entre a cabra e o carneiro; mas distinguimos uma cabra duma cabra, um carneiro dum carneiro? A Individualidade das coisas e dos seres escapa-nos todas as vezes que nos não é materialmente útil apercebê-la. E ai mesmo, onde nós observamos (como quando distinguimos um homem de outro homem), não é a individualidade mesmo que a nossa vista aprende, isto é, uma certa harmonia completamente original de forma e de cores, mas apenas um ou dois traços que facilitarão o reconhecimento prático. 
                 Enfim, para dizer tudo, nós não vemos as mesmas coisas; limitamo-nos, a maior parte das vezes, a ler etiquetas coladas sobre elas. Esta tendência, saída da necessidade, ainda se acentuou sob a influência da linguagem. Porque as palavras (à exceção dos nomes próprios) designam todas gêneros. A palavra, que não nota da coisa senão a sua função mais comum e o seu aspecto banal, insinua-se ente ela e nós mesmos, e mascararia a sua forma aos nossos olhos se essa forma não se dissimulasse já por trás das necessidades que criam a própria palavra.  E não são apenas os objetos exteriores, são também os nossos próprios estados de alma que se nos furtam no que tem de íntimo, de pessoal, de originalmente vivido. 
                 Quando experimentamos amor ou ódio, quando nos sentimos alegres pu tristes, é bem o nosso próprio sentimento que chega à nossa consciência com as mil nuanças fugidias e as mil ressonâncias profundas que fazem dele alguma coisa de absolutamente nosso? Seríamos então todos romancistas, todos poetas, todos músicos. Mas a maior parte das vezes não nos apercebemos do nosso estado de alma senão o seu desenvolvimento exterior. Não aprendemos dos nossos sentimentos senão o seu aspecto impessoal, aquele que a linguagem pôde notar, uma vez para sempre,  porque é aproximadamente o mesmo, nas mesmas condições, para todos os homens. assim, até no nosso próprio indivíduo, a individualidade nos escapa. Movemo-nos entre generalidades e símbolos, como num campo fechado em que a nossa força se mede utilmente com outras forças; e fascinados pela ação, atraídos por ela, para o nosso maior bem, para o terreno que para si escolheu, vivemos numa zona intermédia entre nós e as coisas, exteriormente às coisas, exteriormente também a nós mesmos. Mas de quando em quando, por distração, a natureza suscita almas mais desapegadas da vida.  Não falo desse desapego querido, raciocinado, sistemático, que é a obra de reflexão e de filosofia. Falo dum desapego natural, inato à estrutura do sentido ou da consciência, e que se manifesta espontaneamente por uma maneira virginal, de algum modo, de ver, de ouvir ou de pensar. Se este desapego fosse completo, se a alma não aderisse mais à ação por nenhuma das suas percepções, ela seria a alma dum artista como o mundo ainda não viu. Distinguir-se-ia em todas as artes ao  mesmo tempo, ou antes as fundiria todas numa só. Aperceberia todas as coisas na sua pureza original, tanto as formas, as cores e os sons do mundo material, como os mais sutis movimentos da vida interior. Mas é pedir demais à natureza. Para aqueles mesmos que ela fez artistas, foi acidentalmente, e dum único lado, que levantou o véu, que se esqueceu de ligar a percepção à necessidade. E como cada direção corresponde a um sentido, é por um dos seus sentidos, e por esse sentido somente, que o artista é votado à arte. Dai, na origem, a diversidade das artes. Este aplica-se às cores e a formas, e como ama a cor pela cor, a forma pela forma, como as percebe para elas e não para ele, é a vida interior da coisas que verá transparecer através das suas formas e das suas cores. Ele a fará entrar pouco a pouco na nossa percepção ao princípio, desconcertada. Por um momento, pelo menos, nos desembaçará dos preconceitos de forma e de cor que se interpunham entre os nossos olhos e a realidade. E realizará assim a mais alta ambição da arte, que é aqui revelar-nos a natureza. - Outros recolher-se-ão de preferência em si mesmos. Sob as mil ações nascentes que desenham de fora um sentimento, detrás da palavra banal e social que exprime um estado de alma individual, é o sentimento, é o estado de alma que eles irão procurar simples e puro. E para nos induzir a tentar o mesmo esforço sobre nós mesmos engenhar-se-ão a fazer-nos ver alguma coisa do que tiveram visto; por arranjos rítmicos de palavras, que chegam assim a organizar-se conjuntamente e a animar-se duma vida original, dizem-nos, ou antes sugerem-nos coisas que a linguagem não era feita para exprimir. - Outros cavarão mais profundamente ainda. Sob essas alegrias e essas tristezas que podem com rigor traduzir-se em palavras, aprenderão alguma coisa que já não tem nada de comum com a palavra, certos ritmos de vida e de respiração que são mais interiores ao homem que os seus sentimentos mais interiores, sendo a lei viva, variável com cada pessoa, da sua depressão e da sua exaltação, das suas saudades e das suas esperanças. Desprendendo, acentuando esta música, impo-la-ão à nossa atenção; farão que nós mesmos nos insiramos nela involuntariamente, como transeuntes que entram numa dança. E por ai nos levarão a agitar também, mesmo no fundo de nós, alguma coisa que esperava o momento de vibrar. - Assim, a arte não tem outro objeto senão afastar os símbolos praticamente úteis, tudo o que nos mascara a realidade, para nos pôr face a face com a realidade mesmo. Foi dum mal-entendido sobre este ponto que nasceu o debate entre o realismo e o idealismo na arte. A arte não é seguramente senão uma visão mais direta da realidade. Mas esta pureza de percepção implica uma ruptura com a convenção útil, um desinteresse inato e especialmente localizado do sentido ou da consciência, enfim uma certa imaterialidade da vida, que é o que sempre se chamou idealismo. De maneira que se poderia dizer, que o realismo está na obra quando o idealismo está na alma, e que é à força de idealidade somente que se toma contato com a ralidade. 
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Henrique Bergson, filósofo francês, nasceu em Paris em 1859. Aos 22 anos entrou na Escola Normal superior. Ensinou durante 17 anos nos liceus da província, depois de Paris, e em 1899 foi nomeado professor da Escola Normal. Foi professor do Colégio de França desde 1900. Begson é um filósofo original de longa e profunda influência, além de notável escritor. As suas obras são por toda a parte e em todos os campos, estudadas e discutidas; apoiam-se nelas, além de várias correntes filosóficas, uma corrente religiosa e um movimento socialista: o modernismo católico e o sindicalismo revolucionário. - Obras principais: E'ssai sur les données immediates de la conscience, 1889; Matiére et mémoire, 1896; Le Rire, 1900; l'Evolution créatrice, 1907. 

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

O GRUPO DO LAOCOONTE E O APOLO DO BELVEDER

Esta escultura de mármore, também conhecida como Laocoonte e seus Filhos, está no Museu do Vaticano e é uma das mais importantes obras do mundo antigo.


                  No meio de tantas obras primas desaparecidas, e a atestar a magnificência dessa época que produziu tantas, salvou-se da destruição uma obra famosa, para maravilha de todo o mundo. Refiro-me ao Laocoonte  com os dois filhos, Obra de Agezandro, Apollodoro e Athanadoro,  de Rhodes...  Sabe-se que já ma antiguidade se preferia esta obra a todos os quadros e a todas as estátuas, e merece tanto mais a atenção e a admiração da posteridade quanto é certo que ela nunca produziu nada que se lhe pudesse comparar. O filósofo acha nela uma matéria de reflexões e o artista um assunto inesgotável de estudo, e ambos eles podem convencer de que esse primor oculta ainda mais belezas do que as que a vista descobre, e que o gênio do artista era bem maior do que a sua obra. 
                 Laocoonte é uma natureza entregue à mais alta dor imaginável, representada na figura de um homem que procura reunir contra ela todas as forças conscientes do espírito. Enquanto o sofrimento lhe intumesce os músculos e lhe repuxa os nervos vê-se toda a força do seu espírito, armada contra a dor na sua testa franzida, e o seu peito oprimido pela respiração e pelo constrangimento elevar-separa esconder e concentrar o tormento que lhe vai na alma. Os medrosos suspiros que retem em si o seu hálito que esconde no seu ser, comprimem-lhe o abdômen e escavam-lhe as ilhargas, de maneira a revelar-nos os movimentos das suas vísceras. Mas os seus próprios sofrimentos parecem angustiá-lo menos do que os padecimentos de seus filhos, que fixam os olhos no rosto do pai e lhes gritam por socorro; porque a ternura paterna transparece-lhe nos olhos compadecidos e a compaixão parece nadar neles como num vapor sombrio. A sua fisionomia exprime os lamentos, e não os gritos; os seus olhos dirigem-se para o auxílio supremo. A boca é cheia de ansiedade e o lábio superior, puxado para cima com um movimento de amargura, como num sofrimento imerecido e indigno, levanta-se até ao nariz, incha-o e faz ver as narinas dilatadas e levantadas. 
                  Por baixo da testa representa-se com a maior intensidade essa luta entre a dor e a resistência, como aglomerada num ponto, porque enquanto a dor fez alçar as sobrancelhas, o esforço comprime a carne acima do olho e fá-la descer até a pálpebra inferior, que se acha quase inteiramente coberta pela carne. O artista, não podendo embelezar a natureza, procurou dar-lhe maior desenvolvimento, maior contenção, maior vigor; ali mesmo onde ele colocou a maior dor, transparece também a maior beleza. O lado esquerdo, em que a serpente com sua furiosa mordedura espalha a peçonha, é aquele que pela proximidade do coração mais parece sofrer; esta parte do corpo de Laocoonte pode ser considerada como uma maravilha de arte.  As pernas querem-se-lhe erguer, para escapar do mal; nenhuma parte está em repouso; e os golpes mesmo do cinzel aumentam a expressão dessa   pele transita.
                  A estátua de Apolo é o supremo ideal de arte em todas as obras dos antigos que escaparam à destruição dos tempos. O artista compôs uma figura puramente ideal e apenas empregou o bocado essencialmente necessário para realizar a sua ideia e torná-la visível. Este Apolo exerce todas as outras representações do mesmo deus num grau igual àquele em que o Apolo de Homero exerce o que descrevem os restantes poetas. A sua estatura eleva-se acima dos homens, e a sua atitude anuncia a grandeza que encerra. Uma primavera eterna, como a que existe nos afortunados Elísios, lhe reveste a formosa virilidade duma juventude aprazível e lhe brinca com doce meiguice na soberba estrutura dos seus membros. Para compreender esta obra prima é preciso ir em espírito ao reino da beleza incorpórea e experimentar tornarmo-nos os criadores duma natureza celeste para encher o espírito de uma beleza como não há no mundo real. Porque ai não há nada mortal nem que esteja sujeito às necessidades humanas. Nenhuma veia, nenhum nervo, aquece e agita esse corpo, mas um espírito celeste, que circula como um doce eflúvio, enche, por assim dizer, todo o contorno daquela estátua. 
                   Acaba de perseguir Python, contra quem brandia pela primeira vez o seu arco; alcançou-o na sua rápida carreira, deu-lhe a morte. Do ato da sua satisfação, dirige o augusto olhar como para o infinito, muito para além da sua vitória. Lê-se o desdém nos seus lábios e a indignação que em si abriga, dilata-lhe as narinas e sobe-lhe até à fronte soberba. Mas a paz, que nela paira numa bonança bem-aventurada, mantém-se inalterável, e os seus olhos estão cheios de doçura, como no meio das musas, quando elas o procuram abraçar. Em todas as figuras que nos restam  do Pai dos Deuses e que a arte reverencia, nenhuma há que se aproxime da grandeza com que ele se manifestou ao gênio do poeta divino (Homero), mas aqui na fisionomia do filho, acha-se reunidas as belezas individuais de todas as outras divindades, como em Pandora. Uma fronte de Júpiter, que está prenhe da deusa da sabedoria, e umas sobrancelhas que nos seus movimentos manifestam a vontade do deus; uns olhos da rainha dos deuses arqueados com majestade, e uma boca que, como a do amoroso Baco, respira a volúpia. A cabeleira flexível flutua-lhe em torno da cabeça, como os tenros sarmentos da vinha quando os agita uma brisa suave. Parece ungida com a essência dos deuses, e foram as Graças que, com uma majestade encantadora lha foram atar no alto da cabeça. À vista desta maravilha da arte, esqueço todo o universo e tomo uma atitude de espírito elevado para a contemplar com dignidade. O peito dilata-se-me e eleva-se de admiração, como aqueles que eu vejo cheios do espírito das profecias, e sinto-me transportado a Delfos e aos bosques de Lícia, lugares que Apolo honrava com sua presença. Efetivamente, a imagem que tenho diante dos olhos torna-se vida e movimento, como a beleza aos olhos de Pigmalião. Como poder pintá-la e descrevê-la! A ideia que acabo de dar desta imagem, eu a deposito aos seus pés, como aqueles, que vindo para coroar os deuses com as suas grinaldas, lhas punham  aos pés, por não poderem atingir as suas cabeças. 

terça-feira, 15 de agosto de 2017

A INFLUÊNCIA DO CLIMA SOBRE A OBRA DE ARTE

               Depois de ter indicado a origem da arte e os materiais com que se fazem as suas obras, temos de investigar qual a influência do clima sobre a arte, como causa das diferenças da arte entre as nações. 
               Por influência do clima entendemos os efeitos que a situação diversa dos países, a temperatura variável do ar e as diferenças na alimentação dos seus habitantes exercem sobre a figura, do mesmo modo que sobre a sua maneira de pensar. O clima, diz Políbio, forma os costumes das nações, a sua figura e a sua cor. 
               A respeito da figura dos homens, basta olhar para eles para reconhecer que a alma e o caráter das nações estão pintados na fisionomia dos indivíduos; e como a natureza separou grandes reinos e terras por meio de montes e de rios, do mesmo modo as diferenças entre eles existentes distingue os habitantes pelas suas feições características. E por isso, em regiões muito afastadas, a diferença reside até em diferentes partes do corpo, ou na estatura. Os animais, dentro de cada espécie e conforme a situação das terras que habitam, não diferem mais entre si do que os homens, e alguns pretendem mesmo ter observado que os animais tem o caráter dos habitantes dos países em que vivem. 
               O feitio dos rostos é tão variável como as línguas e os seus dialetos, e como esta diferença provém dos órgãos da palavra , dai resulta que os nervos da língua devem ser mais hirtos e menos ligeiros na regiões frias do que nos países quentes; e se os groenlandeses e vários povos da América carecem de letras, isso deve provir da mesma causa. Dai resulta também o fato de todas as línguas do norte terem tantas palavras monossilábicas e de serem abarrotadas de tantas consoantes que a sua combinação e pronúncia se tornam, se não impossíveis, pelo menos muito difíceis às outras nações. Um notável escritor (Gravina) procura a diferença dos dialetos da língua italiana na diversa estrutura e conformação dos órgãos da palavra. Partindo deste princípio, diz que os lombardos, nascidos nas regiões mais frias da Itália, tem uma pronúncia áspera e contraída; que os toscanos e romanos tem uma pronúncia já mais pausada, e que os napolitanos, que habitam um clima ainda mais quente, ferem as vogais mais do que aqueles, e falam com a boca muito aberta. Os que estão nos casos de ver homens de diferentes nações, distinguem-nos tão perfeita e infalivelmente pelas feições da sua fisionomia como pelos sons da sua voz. Como o homem foi sempre o principal objeto de arte, os artistas de todos os países deram às suas figuras a fisionomia da sua nação; e que a arte na antiguidade tomou tantas formas quantas as configurações dos homens, provam-no as idênticas relações que se acham entre as nossas nações modernas. Os alemães, os holandeses e os franceses, quando não saem da sua terra e da sua natureza, são tão fáceis de conhecer nas suas pinturas, como os chineses e os tártaros, e Rubens, depois de uma longa permanência na Itália, desenhou sempre as suas figuras como se nunca tivesse abandonado a pátria. 
               A conformação dos Egípcios de hoje parece que deveria mostrar-se ainda hoje  tal qual ela aparece nas figuras dos seus antigos artistas; no entanto esta correspondência entre a natureza e a sua representação já não é a mesma de antes. Efetivamente, que a maior parte dos Egípcios fossem grossos e gordos, como se descrevem os habitantes do Cairo, é coisa que não se poderá julgar pelas suas figuras dos tempos antigos, indicativas da natureza do seu corpo nesses mesmos tempos; natureza que parece ter sido oposta ao que é hoje. Deve, todavia, notar-se que os antigos já tinham descrito os Egípcios  como homens grossos e anafados. O clima foi, com efeito, o mesmo em todos os tempos, mas o país e os habitantes tomaram uma configuração diferente. Se se considerar que os Egípcios de hoje são uma raça estrangeira que introduziu também a sua língua particular, que o seu culto e forma do seu governo e a sua maneira de viver são absolutamente diferentes da sua antiga condição, compreender-se-ão facilmente as diferenças na conformação dos corpos. A enorme população do antigo Egito faria os Egípcios sóbrios e laboriosos; a sua principal ocupação era a agricultura; a sua alimentação consistia mais em frutos do que em carnes, e por isso o seu corpo não era demasiado cheio. Mas os Egípcios de hoje entorpecem-se na ociosidade, e querem viver sem trabalhar, o que produz a sua grande corpulência. 
                A mesma observação se pode fazer sobre os Gregos dos nossos dias. Porque, além de que o seu sangue se misturou durante séculos com o de tantos povos que se estabeleceram entre eles, facilmente se compreende que a sua condição atual, a sua educação, a sua instrução e a sua maneira de pensar devem ter tido também alguma influência sobre o seu especto exterior. Apesar de todas estas circunstâncias desvantajosas, a gente grega é ainda  hoje gabada pela sua beleza, e quanto mais a natureza se aproxima do céu da Grécia, mais bela ela é, mais majestosa e mais eficaz na conformação do homem. É por isso também que nas regiões mais belas da Itália se vêem raramente essas feições indecisas, insignificativas e equivocas que se encontram frequentemente nos que vivem para lá dos Ales (Winkelman escrevia na Itália); pelo contrário, os italianos não majestosos, sem deixar de ser graciosos, e tem o rosto grande, cheio e com as suas partes completamente harmoniosas. Esta forma superior é tão evidente que a cabeça do mais humilde homem do povo poderia figurar no quadro histórico mais sublime, e não seria difícil encontrar entre as mulheres de baixa condição, um modelo para uma Juno. Nápoles, que mais do que outras terras da Itália goza de um clima benigno e de uma temperatura doce e regular, tem essa condição porque está muito próxima da latitude da genuína Grécia, e tem frequentemente  formas e figuras que podiam servir de modelo a um belo ideal e que, pelo feitio do rosto e principalmente pela harmonia das feições características, parecem verdadeiras esculturas.
                 Aqueles mesmo que nunca viram este país podem formar uma ideia da fisionomia dos seus habitantes partindo do princípio que a finura dos homens é tanto maior quanto mais quente é o clima que eles habitam. Os napolitanos são mais finos e mais astutos que os Romanos, e os Sicilianos mais que os Napolitanos; mas os Gregos ultrapassam mesmo os Sicilianos. Quanto mais puro e sutil é o ar, disse Cícero, mais finas são as cabeças. 
                Assim a alta beleza, que não consiste apenas numa pele delicada, numa cor brilhante, em olhos vivos ou languidos,  mas na conformação e na figura, acham-se mais frequentemente nos países que gozam dum clima mais temperado. Se e verdade, como afirma um escritor inglês, que só os italianos podem pintar e esculpir, é nas belas figuras do próprio país que se deve procurar em parte a causa desta aptidão, que se pode adquirir mais facilmente por uma contemplação direta e cotidiana. No entanto, a beleza perfeita era também rara entre os Gregos, e Cotta, em Cícero, diz que durante a sua estada em Atenas, poucos jovens tinha encontrado que fossem verdadeiramente belos. O sexo frágil de Malta, de especial beleza, mostra-nos também quanto contribui um clima favorável para a conformação da beleza; é que nessa ilha nunca há inverno. 
                Os mais belos dos Gregos, sobretudo na cor, achavam-se sob o céu da Jônia na Ásia Menor, sob o céu que criou e inspirou Homero. Atestam-no Hipócrates e Luciano; e um viajante do século XVI não se cansa de exaltar a beleza do sexo frágil dessa região, a delicadeza e a brancura látea da sua pele e a frescura e a vivacidade da sua cor. É que o céu é muito sereno nessa terra e nas ilhas do Arquipélago, por causa da sua situação, e a temperatura que não é nem muito quente nem muito fria, é ali mais constante e mais igual do que na própria Grécia, sobretudo nas regiões marítimas, expostas ao vento da África, do mesmo modo que toda a costa meridional da Itália e os outros países que ficam em frente da zona africana. 
                 Este vento, na época  chamado Africus pelos romanos e gregos e atualmente Sirocco, obscurece e anuvia o ar com vapores ardentes e pesados, torna-o insalubre. e enerva toda a natureza - homens, animais e plantas. Quando ele sopra, a digestão torna-se morosa, e o corpo e o espírito abatidos, enfada-se e enfraquece, tornando-se incapaz de criação. Percebe-se, pois, como este vento deve influir sobre a beleza e a cor da pele. Dá aos povos dessas costas uma cor baça e amarelada, que é mais comum aos napolitanos, especialmente da capital, por causa das ruas estreitas e das casas altas, do que a gente do campo. Tem a mesma cor os habitantes das costas do Mar Mediterrâneo, nos estados da Igreja, em Terracina, Netuno, Ostia, etc. Mas parece que os pântanos, que carregam de pestilência o ar da Itália, não tem tido influências nocivas na Grécia; assim, Ambracia, por exemplo, que era uma cidade muito bem edificada e muito famosa, estava no meio de pântanos e não tinha senão uma rua. 
                 A prova evidente de que os Gregos e todos os Levantinos hodiernos possuem os melhores tipos de beleza; é que não se encontra entre eles narizes achatados, que são uma das maiores disformidades do rosto. Scaliger observou também isto nos judeus, e que os judeus de Portugal tem, na maior parte, narizes aquilinos; por isso se chamava a esses narizes - narizes judeus. Vesale observa que as cabeças dos Gregos e dos Turcos tem mais belo oval que as dos Alemães e do Neerlandenses. É também bom notar que as bexigas são menos perigosas  em todos os países quentes do que nos países frios, onde constituem uma doença epidêmica e assolam como a peste. Em mil pessoas que se encontram na Itália, não se acham dez marcadas com sinais de bexigas; e este mal era mesmo desconhecido dos Gregos da antiguidade. 
                  Tão sensível como a influência do clima sobre a forma humana, é a sua influência sobre a maneira de pensar, para o que contribuem as circunstâncias exteriores, principalmente a educação, a constituição e a forma de governo dum povo. A maneira de pensar, tanto das nações do Oriente como dos Gregos, revela-se nas obras de arte. Nos orientais a expressão figurada é tão quente e fogosa como o clima em que habitam, e o voo dos seus pensamentos ultrapassam por vezes os limites do possível. Foi nesses cérebros ardentes que se construíram as estátuas monstruosas dos Egípcios e dos Persas, que reuniam numa mesma figura naturezas e sexos diferentes, visando mais os seus artistas o extraordinário do que o belo. 
                  Pelo contrário, os Gregos, que viviam sob um céu e um governo mais suave, e habitavam um país que, por causa das suas doces estações, Pallas lhes tinha designado entre todas as terras para sua habitação; os Gregos, que falavam numa língua rica em imagens, tinham também ideias e imagens pitorescas. Os seus poetas, como Homero, falam não só por imagens, mas ainda pintam eles próprios as imagens que muitas vezes se encontram numa única palavra, desenhadas pela consonância, e traçadas, por assim dizer, com cores naturais.  A sua imaginação não era exagerada, como a dos orientais, e os seus sentidos, que atuavam por nervos ágeis e sensíveis sobre um cérebro delicadamente tecido, aprendiam imediatamente as diferentes propriedades de um objeto e ocupavam-se princialmente na contemplação do belo. 
                 Foi entre os Gregos da Ásia Menor, cuja língua, depois da sua saída da Grécia, se tinha tornado mais rica em vogais e portanto mais doce e mais musical, porque gozavam de um clima muito mais delicioso do que os do restantes Gregos, foi entre eles e sob o seu céu que nasceram e se inspiraram os primeiros poetas; foi sobre  este território que germinou a filosofia grega; os seus primeiros historiadores nasceram nessa terra, e Apeles, o pintor das Graças, foi procriado sob esse céu de delícias. Mas estes Gregos, incapazes de defender a sua liberdade contra as forças limítrofes da Pérsia, não puderam nunca constituir-se num estado poderoso e livre, co os Atenienses, e por isso nunca a arte e a ciência puderam fixar a sua sede principal na Ásia Jônica. Mas Atenas, onde depois da expulsão dos tiranos foi estabelecido um regime democrático, em que tomava parte todo o povo, o espírito de cada cidadão elevou-se, e a própria cidade se elevou acima de toda a Grécia. O bom gosto tornou-se geral, e os cidadãos opulentos despertaram a consideração e o amor dos seus concidadãos pela construção de soberbos edifícios públicos e de obras de arte, e todos afluíram em massa a essa cidade, como os rios aluem ao mar, procurando o caminho da  gloria junto do seu esplendor e da sua grandeza. Com as ciências estabeleceram-se ali as artes, ali tomaram o seu verdadeiro centro, e foi dai que se espalharam para outras regiões. A prosperidade do Estado foi a causa do progresso das artes em Atenas, e mais tarde em Florença, onde em circunstâncias idênticas, as ciências e as artes começaram a brilhar depois de um longo período de trevas. 
                 Ainda assim, quando julgamos os talentos naturais dos povos em geral, e dos Gregos em particular, não nos devemos restringir apenas à influência do clima, mas devemos também ter em consideração a educação e a forma do governo. Efetivamente, as circunstâncias exteriores não atuam menos sobre nós do que o ar que nos rodeia, e o hábito exerce um tão grande poder que até o próprio corpo e a própria alma, em nós criados pela natureza, se afeiçoam de uma maneira particular; é assim que um ouvido habituado à música francesa não será impressionado pela mais delicada música italiana. 
                Dai as diferenças que se notam também entre os Gregos da própria Grécia, que Políbio descreveu relativamente à sua maneira de fazer a guerra e à sua valentia. Os Tessálios eram bons guerreiros, sempre que podiam investir com pequenos troncos, mas nada faziam numa batalha campal; com os Etólios acontecia o contrário. Os Cretenses eram sem igual nas emboscadas, nas tarefas em que  era necessário empregar a astúcia, ou para causar prejuízos aos inimigos, mas não eram competentes para as ações  em que só a coragem podia decidir.  Os Macedônios eram ao contrário. Os Arcádios eram obrigados, pelas suas antigas leis, a aprender música, e assim deveriam se manter até 30 anos; o objetivo era tornar afáveis seu caráter e os seus costumes, que pela aspereza do clima da sua terra montanhosa tinham a tendência de se ternarem muito duros e selvagens desde a juventude; e exatamente por essa razão, eram os mais afáveis de todos os  Gregos.  Os Cinetianos foram os únicos entre eles que se afastaram dessa disposição e que não quiseram aprender e praticar a música e por essa razão logo voltaram à sua selvageria originária e foram desprezados por todos os Gregos. 
                  Nos países em que juntamente com a influência do clima colabora alguma sombra da antiga liberdade, a atual maneira de pensar é muito semelhante à antiga; é o que se vê ainda em Roma, onde o povo sob o governo eclesiástico goza de uma ampla liberdade. Ainda hoje se recrutaria entre os romanos uma boa quantidade de guerreiros belicosos e intrépidos, capazes, como os seus antepassados, de desafiar a morte, e ainda se vêem mulheres do povo, cujos costumes são muito corruptos, mostrar tanta coragem e valor  como as antigas Romanas, o que se poderia provar com atitudes mais extraordinárias, se as condições deste tempo permitisse. 
                  O talento singular dos Gregos  para as artes revela-se ainda em nossos dias com capacidade quase universais, igualando-se aos homens que habitam as regiões mais quentes da Itália; e na sua habilidade domina a imaginação, como no inglês pensador domina a razão. Alguém disse, não sem motivo, que os poetas para lá dos montes falam por imagens, mas que fornecem poucas imagens; e devemos reconhecer que os quadros admiráveis e, até certo ponto terríveis, que formam a grandeza de Milton, longe de constituírem assuntos dignos de nobres pincéis, nem chegam a ser próprios para a pintura.  As imagens de muitos outros poetas são grandes para os ouvidos e pequenas para o espírito. Mas em Homero tudo é pintura, e todas as ficções são quadros.  Quanto mais quente são as províncias da Itália, maiores talentos elas produzem e mais fogosa é a imaginação dos artistas; os poetas sicilianos são cheios de imagens raras e imprevistas. Mas essa fogosa imaginação não é exasperada, borbulhante; como o temperamento dos homens e a temperatura das terras é mais igual que nos países frios,há mais ali do que em qualquer outra parte, uma fleuma feliz. 
                  Quando falo da habilidade natural deste povo para as artes, não pretendo com isso limitar esse talento a ele só ou recusá-lo aos outros, o que seria desmentido pela experiência. Efetivamente, Holbein e Alberto Durer, os pais da arte na Alemanha, mostram um talento de primeira ordem, e se eles, como Rafael, Corréggio e Ticiano, pudessem estudar as obras dos antigos, seriam tão grandes como eles, ou quem sabe se não os excederiam. Corréggio não subiu à sua grandeza como se pretende, sem nenhum conhecimento da antiguidade; seu mestre André Mantegna tinha-a conhecido, e na grande coleção do Sr. Cardeal Alexandre Albani acham-se vários desenhos de Mantegna, feitos por estudos da antiguidade. 
                  Se a falta de pinturas na Inglaterra, que não teve um único artista duma reputação universal, e na França que, à exceção de um ou outro talento, se encontra quase nas mesma condições, apesar de todas as despesas do Estado, se esta falta é devida às coisas que apontei, deixo isso à apreciação de outros (mais competentes). 
 João Joaquim Winckelmann, fundador da arqueologia científica e da História da arte antiga; um dos primeiros prosadores clássicos da Alemanha, nasceu a 9 de Dezembro de 1717 em Stendal (Altmark, Brandenburgo). Seu pai era um pobre sapateiro muito doente, que teve dese  recolher a um hospital, e para que Winkelmann continuasse os seus estudos foi preciso que o reitor de Stendal se interessasse por ele e o mandasse estudar em Berlim. A sua vida nesta cidade foi cheia de sacrifícios e de trabalhos. Enfim, o conde de Buman tornou-o como seu bibliotecário em Northmutz (perto de Dresde).  Em 1755 apareceu a sua primeira obra Gedanken uber die Nachahmung der Griech.- Werke in Malerei und Bildhauwerkunft (Reflexões sobre a imitação das obras gregas na pintura e na escultura), 1755; que fez uma enorme impressão.  Em 1756, depois de ter abjurado o protestantismo, partiu para Roma, onde em 1758 foi feito, pelo Cardeal Albani, conservador das suas coleções de antiguidade. Em 1763 foi nomeado presidente das antiguidades de Roma e em seguida bibliotecário do Vaticano. Em 1768,na volta de uma viajem à  Alemanha, onde fora angariar recursos para umas escavações que queria empreender em Olímpia, foi assassinado em Trieste por um certo Archangeli. A sua Geschichte der Kunst des Alterthums (História da Arte Antiga, 1764), marca uma data fundamental na história da arte. Outras obras: Sendschreiben von den herculanischen Entdeckungen (Cartas sobre as antiguidades de Herculanum); Anmerkungen uber die Geschichte der Kunst (Notas sobre a História da Arte, 1767) e a importante coleção Monumenti antichi inediti spiagati ed illustrati, 1767. Foi, sem dúvida, um dos maiores estudiosos de arte de todo o mundo, especialmente da arte antiga.
          

domingo, 13 de agosto de 2017

A ORIGEM DA ARTE

Da História da Arte Antiga
Winckelmann
                 As artes que dependem do desenho começaram, como todas as invenções, pelo necessário; em seguida procurou-se o belo, e deram enfim nu supérfluo; tais são os três princípios da arte. 
As mais antigas notícias dizem-nos que as primeiras figuras desenhadas só oferecem do homem o contorno, e não o verdadeiro aspecto. Desta simplicidade de fórmulas passou-se das proporções, o que deu a precisão. Depois aumentou a segurança, e ousou subir até ao grande, processo pelo qual a arte chegou pouco a pouco ao sublime e atingiu entre os gregos a mais alta beleza.  Depois de se terem combinado todas as partes e de se terem procurado os ornamentos, caiu-se no supérfluo, desde esse momento perdeu-se de vista a grandeza da arte, e veio a sua completa decadência. 
                Tal é, em poucas palavras, o objeto desta História da arte. Neste capítulo tratar-se-á: primeiro da arte antiga em geral; em segundo lugar, das diferentes matérias empregadas na escultura; e em terceiro lugar, da influência do clima sobre a arte. 
                A arte começou pela configuração mais simples, provavelmente por uma espécie de escultura; porque até  uma criança pode dar uma certa forma a uma massa mole, mas não poderia traçar coisa alguma sobre uma superfície plana; porque para modelar basta ter a noção duma coisa,enquanto para desenhar, é preciso possuir muitos outros conhecimentos; o que não impediu que a pintura se tornasse depois a decoradora da escultura. 
                Parece que a arte se originou da mesma maneira em todos os povos que a cultivaram, e não há razão nenhuma bastante forte  para se lhe designar uma pátria particular.  Como as primeiras estátuas parecem ter representado imagens de divindades, concluiremos que a época da invenção da arte remonta mais ou menos alta, segundo a antiguidade das nações e a introdução precoce ou tardia do culto; de modo que é muito provável que os Caldeus e os Egípcios começassem antes dos Gregos a representar exteriormente os atos espíritos que veneravam. Dá-se aqui o que se dá com outras artes e descobertas; a prática de tingir com púrpura foi conhecida e exercida nos países orientais muito antes do que nas outras partes. As notícias que a "Escritura Sagrada" nos dá das imagens esculpidas são muito anteriores a tudo o que a esse respeito sabemos dos gregos. As imagens trabalhadas primitivamente em madeira, e as vazadas em ferro fundido, tem todas a sua denominação particular na língua hebraica; com o correr dos tempos, as primeiras foram douradas ou revestidas de lâminas de ouro. Mas o erro daqueles que falam da origem dum uso ou duma arte, e da sua comunicação de um povo a outro, vem ordinariamente de que considerem partes isoladas que tem semelhanças entre si, e que tiram dai conclusões gerais; foi assim que Dionísio de Helicarnasso, falando do cinto de que se cingiam os lutadores gregos, assim como os romanos, pretendem que este tinham tirado esse uso daqueles. 
                A arte florescia nos egípcios desde tempos imemoráveis, e se é certo que Sosostris viveu quatro séculos antes da guerra de Troia, os grandes obeliscos que se acham em Roma existiam já nesse reino e já se tinham construído as obras desse monarca como os vastos edifícios de Tebas,  enquanto sobre a arte dos gregos pairavam ainda as trevas e a escuridão. 
                Na Grécia, se bem que muito mais tarde que nos países orientais, a arte começou por um tão grande simplicidade, que os gregos, em vez de tirarem os primeiros germens artísticos de qualquer outro povo, poderiam muito bem ser os seus primeiro inventores. Veneravam já sob forma visível trinta divindades numa época em que se não representavam ainda sob a  forma humana e se contentavam de as designar por cepo informe ou por uma pedra quadrangular, como faziam os árabes e as amazonas. Assim eram figuras de Juno de Thespis e a Diana de Ícaro. A Diana Patroa e Júpiter Milichus de Corintho, assim como a antiga Vênus de Paphos, não eram mais do que uma espécie de colunas.  Baco foi venerado sob a forma duma coluna, e até o Amor e as Graças foram representadas por simples pedras. É por isso que a palavra coluna significava uma estátua ainda nos melhores tempos da Grécia. Entre os espartanos Castor e Pólux tinham a forma de dois madeiros transversais; e essa antiquíssima figura chegou até nós no sinal II, por que não representados os dois gêmeos do Zodíaco. 
                 Com o tempo colocaram cabeças sobre essas pedras; entre várias estátuas dessa espécie, havia um  Neptuno em Tricoloni e um Júpiter em Tegea, ambos na Arcádia, porque os gregos dessa região conservavam mais do que os de qualquer outra parte a antiga forma da arte. Manifesta-se  assim nas primeiras imagens dos gregos uma concepção e uma criação original. Também a "Sagrada Escritura" nos fala de certos ídolos do paganismo que de humano só tinham a cabeça? Essas pedras quadrangulares com cabeças foram, como é sabido, denominadas pelos gregos Hermes, isto é,  grandes pedras, denominação conservada constantemente pelos artistas. 
                 Depois desse primeiro esboço, deste primeiro bosquejo duma figura, vamos examinar a sua formação progressiva, segundo o testemunho dos escritores e dos monumentos da antiguidade. Nestas pedras encimadas por uma cabeça, notava-se apenas no meio delas a diferença dos sexos, que um rosto indefinido deixava em dúvida. Quando se diz que Eumarus de Atenas foi o primeiro que indicou na pintura a diferença dos sexos, isto não se deve entender senão da conformação do rosto nas idades juvenis; este artista viveu antes de Rômulo e nao muito depois do restabelecimentos dos jogos olímpicos por Iphitus. 
                 Enfim, segundo a opinião mais geral, Débalo começou a dar à parte inferior destas estátuas a forma de pernas; e como ainda não se sabia fazer em pedra figuras humanas inteiras, este artista trabalhou em madeira, e a ele devem, segundo parece, as primeiras estátuas, o nome de Dedali. Dá-nos a sua opinião sobre este artista um estatuário do tempo de Sócrates; se Dédalo, diz ele, voltasse ao mundo, e se pusesse a fazer obras como aquelas que correm com o seu nome, tornar-se-ia, como dizem os estatuários, ridículo a todos os olhos. 
                Os primeiro ensaios destas figuras eram, entre os  Gregos, formados de linhas simples e a maioria das vezes retas, e sabe-se que não houve nenhuma diferença entre o começo da arte nos Egípcios, Etruscos e Gregos, como o certificam os antigos escritores; o que se prova também por uma das mais antigas figuras gregas de bronze, existente no Museu de Mani, em Veneza...  É a esta maneira que se deve atribuir a semelhança dos olhos nas cabeças das antigas medalhas gregas e nas figuras egípcias; tanto numas como noutras, são chatos e alongados. Os primeiros quadros eram monogramas, como Epicuro denominava os deuses, isto é, apresentam apenas o contorno da sombra dum homem. 
                Formou-se assim com essas primeiras linhas e primeiras formas uma figura artística, que se chama ordinariamente egípcia. Os Gregos não teriam muita ocasião de aprender qualquer coisa dos Egípcios; porque antes do reinado de Psamético, o acesso do Egito era impedido a todos os estrangeiros, e já antes desse tempo os Gregos cultivavam as artes. Demais, o que os sábios que viajavam no Egito tinham em vista era principalmente a forma de governo daquele país. Mais verossímil seria a opinião dos que fazem vir todas as descobertas do Oriente, se atribuíssem essa influência aos Fenícios, com que os Gregos tiveram muito remotas relações comerciais e a que deviam, por intermédio de Cádmo, o seu primeiro alfabeto. Desde os tempos mais antigos, antes mesmo de Ciro, que com os Fenícios estavam aliados os etruscos, poderosos no mar, como o prova, entre outras coisas, a esquadra comum que eles equiparam contra os Focenses. 
                  Havia entre os artistas desses três povos, um uso comum: o de porem inscrições nas suas obras. Os Egípcios colocavam-nas sobre a base e nas colunas que sustentavam as figuras, mas os Gregos primitivos, como os Etruscos, punham-nas sobre as próprias figuras. Em Elis, sobre a coxa da estátua dum vencedor de jogos olímpicos estavam inscritos dois versos gregos, e num mesmo lugar, na ilharga dum cavalo, obra dum certo Dionísio de Árgus, estava gravada uma inscrição. Também Myron colocou ainda o seu nome sobre a coxa dum Apolo, com letras gravadas em prata...
                  A ciência dos Etruscos e dos Gregos fez com que eles saíssem das linhas retas das primeira figuras, em que ficaram os Egípcios. Mas com os Etruscos, a ciência precedeu a beleza, e como é fundada em regras rígidas, começou a ensinar com uma limitação rigorosa e severa, e o desenho tornou-se correto, mas anguloso, e significativo, mas duro e muitas vezes exagerado, como vemos nas escultura dos tempos modernos aperfeiçoada por Miguel Ângelo. Neste estilo foram executados baixos relevos em mármore e pedra gravadas, que serão indicadas no lugar conveniente; e este era o estilo que os antigos escritores comparam com o dos Etruscos e de que, como parece, a escola de Egina se apropriou; por isso que foram os artistas  dessa ilha, que era habitada por Dórios, que mais tempo o conservam. 

A OBRA DE ARTE

Hipólito Taine 
                   O assunto que vou tratar é a história da arte, e principalmente da pintura na Itália. Antes de entrar propriamente nesse curso, desejo indicar-vos o seu método e o seu espírito. 
                   O ponto de partida deste método consiste em reconhecer que uma obra de arte não é isolada, e por consequência em investigar o conjunto de que ela depende e que a explica. 
                   O primeiro passo não é difícil. Em primeiro lugar, e com toda a evidência, uma obra de arte, um quadro, uma tragédia, uma estátua, pertencem a um conjunto, quer dizer à obra total do artista que é o seu autor. Isto é elementar. Todos sabem que as diferentes obras de um artista são todas parentes, como se fossem filhas do mesmo pai, isto é, que tem entre si semelhanças notáveis. Sabeis que cada artista  tem seu estilo, um estilo que se encontra em todas as suas obras. Se é um pintor, tem o seu colorido, rico ou amortecido, os seus tipos preferidos, nobres ou vulgares, as suas atitudes, a sua maneira de compor, mesmo os seus processos de execução, os seus empastamentos, o seu modelado, as suas cores, o seu modo de fazer. Se é um escritor, tem as suas personagens, violentas ou pacíficas, as suas intrigas, complicadas ou simples, os seus desenlaces, trágicos ou cômicos, os seus efeitos de estilo, os seus períodos, e até o seu vocabulário. É tão verdade isto, que um conhecedor, ao apresentarem-lhe uma obra não assinada de um mestre um tanto eminente é capaz de reconhecer de que artista é essa obra, e isso quase  certamente; e se a sua experiência é bastante grande e o seu tato bastante delicado, pode dizer a que época da vida do artista, a que período do seu desenvolvimento pertence a obra de arte que lhe apresentam.
                   Eis o primeiro conjunto a que deve-se referir a obrade arte. 
                   Eis o segundo: Este mesmo artista, considerado com a obra total que produziu, não está isolado. Há também um conjunto em que está compreendido, conjunto maior do que ele, e que é a escola ou a família de artistas do mesmo país e da mesma época a que ele pertence. Por exemplo, em torno de Shakespeare que, à primeira vista, parece maravilha caída do céu e como um aerólito vindo de um outro mundo, acha-se uma dúzia de dramaturgos superiores, Webster, Ford, Massinger, Marlowe, Ben Jonson, Fletcher e Beaumont, que escreveram no mesmo estilo e no mesmo espírito que ele. O seu teatro tem os mesmos caracteres que os dele; nele encontrareis as mesmas personagensviolentas e terríveis, os mesmos desenlaces sanguinolentos e imprevistos, as mesmas paixões bruscas e desenfreadas, o mesmo estilo desordenado, bizarro, excessivo e esplêndido, o mesmo sentimento intenso, poético, do campo e da paisagem, os mesmos tipos de mulheres delicadas e profundamente amantes, - Do mesmo modo, Rubens parece uma figura única, sem percursores e sem sucessores. Mas basta ir à Bélgica e visitar as igrejas de Gand, de Bruxelas, de Bruges ou de Antuérpia, para notar todo um grupo de pintores cujo talento é semelhante ao seu: Crayer em primeiro lugar, que foi considerado no seu tempo como seu como seu rival,  Adam Van Noort, Gérand Zeghers  Romboutz, Abraão Jansens, Van Roose, Van Thuldem, João Van Oost, outros ainda que vós conheceis, Jordeans, Van Dick, que conceberam todos a pintura no mesmo espírito, e que, entre diferenças próprias, conservam sempre um ar de família.  Como Rubens, comprazeram-se em pintar a carne florescente e são, a rica e frequente palpitação da vida, a polpa sanguínea e sensível que se ostenta opulentamente à superfície do ser animado, os tipos reais e muitas vezes os tipos brutais, o élan e o abandono do movimento livre, os esplêndidos luzidos e recamados, os reflexos da púrpura e da seda, a gala das roupagens agitadas e torcidas.  Hoje em dia o seu grande contemporâneo parece ofuscá-los sob a sua glória; mas nem por isso é menos verdade que, para o compreender, é preciso reunir em volta dele esse feixe de talentos de que ele é a haste mais alta, e essa família de artistas de que ele é o mais ilustre representante. 
                 Eis um segundo passo. Resta um terceiro a fazer. Esta família de artistas está compreendida num conjunto mais vasto, que é o mundo que a rodeia e cujo gosto é conforme o seu. Porque o estado dos costumes e do espírito é o mesmo para o público e para os artistas; eles não são homens isolados. É só a sua voz que nos ouvimos neste momento através da distância dos séculos; mas por baixo dessa voz estrepitosa que vem vibrando até nós, distinguímos um murmúrio e como um vasto sussurro, a grande voz infinita e múltipla do povo que cantava em uníssono em torno deles. Eles não foram grandes senão em virtude dessa harmonia. E era preciso que assim fosse: Phidias, Ictinus, os homens que fizeram o Parthenon  e o Júpiter Olímpico, eram, como os outros atenienses, cidadãos livres e pagãos, educados na "palestra", tendo-se exercitado nus, habituados a deliberar e a votar na praça pública, tendo os mesmos hábitos, os mesmos interesses, as mesmas ideias, as mesmas crenças, homens da mesma raça, da mesma educação, da mesma língua, de modo que, por todas as partes importantes da sua vida, vinham a ser semelhantes aos seus espectadores. 
                  Esta concordância torna-se ainda mais sensível se se considera uma época mais aproximada da nossa; por exemplo, a grande época espanhola, que se estende desde o século XVI até aos meados do século XVII, a dos grandes pintores, Velasques, Murillo, Zurbaran, Francisco de Herrera, Alonzo Cano, Morales, a dos grandes poetas, Pole de Vegam Calderon, Cervantes, Tirso de molina, D. Luiz de Leon, Guilhem de Castro e tantos outros. Sabeis que a Espanha nessa época era toda monárquica e católica, que vencia os Turcos em Lepanto, que fundava feitorias, na África, que combatia os protestantes na Alemanha, os perseguia na França, os atacava na Inglaterra, que convertia e subjugava-os idólatras do novo mundo, que expulsava do seu seio os Judeus e os Mouros, que purificava a sua própria crença à força de autos-de-fé e de perseguições, que prodigalizava as frotas, os exércitos, o ouro e a prata da sua América, o mais preciosos sangue dos seus filhos, o sangue vital do seu próprio coração, em cruzadas desmedidas e multiplicadas, com tal obstinação e tal fanatismo que caiu exausta ao fim de século e meio sob os pés da Europa, mas com tal entusiasmo, com tal esplendor de glória, com fervor tão nacional, que os seus súditos, amorosos pela monarquia em que se concentravam as suas forças e pela causa a que dedicavam a sua vida, não experimentavam outro desejo que não fosse o de exaltar a religião e a realeza, e de formar em torno da Igreja e do trono um coro de fiéis, de combatentes e de adoradores. 
                   Nessa monarquia de inquisidores e de cruzados, que conservam os sentimentos cavaleirescos, as paixões sombrias, a ferocidade, a intolerância e o misticismo da Idade Média, os maiores artistas são homens que possuíram, no mais alto grau, as faculdades, os sentimentos e as paixões desse público que os rodeava. Os poetas mais célebres, Lope de Vega e Calderon, foram soldados de aventura, voluntários da Armada, duelistas e amorosos, tão exaltados, tão místicos no amor como os poetas e os D. Quixotes dos tempos feudais; católicos apaixonados, tão ardentes que no fim de sia vida um deles se fez familiar da Inquisição, que outros se fazem padres, e que o mais ilustre de todos eles, o grande Lope, dizendo a missa, desmaia ao pensar no sacrifício e no martírio de jesus Cristo. Por toda a parte encontraríamos exemplos semelhantes da aliança e da harmonia íntima que se estabelece entre o artist e os seus contemporâneos; e podemos concluir com segurança que, se se quiser compreender o seu gosto e o seu talento, as razões que lhe fazem escolher tal gênero de pintura ou de drama, preferir tal tipo e tal colorido, representar tais sentimentos, é no estado geral dos costumes e do espírito público que se devem procurar. 
                 Chegamos assim a assentar esta regra, que, para compreender uma obra de arte, um artista, um grupo de artistas, é preciso conhecermos com exatidão o estado geral do espírito e dos costumes do tempo a que pertenciam. Ai se acha a explicação última; ai reside a causa primitiva que determina o resto. Esta verdade, meus senhores, é confirmada pela experiência; com efeito, se se percorrerem as principais épocas da história da arte, ver-se-á que as artes aparecem e desaparecem ao mesmo tempo que certos estados de espírito e dos costumes a que elas estão ligadas. - Por exemplo, a tragédia grega, a de Eschiles, de Sófocles e de Eurípides aparece a quanto a vitória dos Gregos sobre os Persas, na época heroica das pequenas cidades republicanas, por ocasião do grande esforço que lhes faz conquistar a sua independência e estabelecer o seu ascendente no universo civilizado; e vimo-la desaparecer com essa independência e essa energia, quando a depressão dos  caracteres e a conquista macedônica a entregam a Grécia aos estrangeiros. - Do mesmo modo, a arquitetura gótica desenvolve-se com o estabelecimento definitivo do regime  feudal na semi-renascença do século XI, no momento em que a sociedade, livre dos Normandos e dos salteadores, começa a consolidar-se; e vê-se desaparecer na ocasião em que esse regime militar de pequenos barões independentes, com o conjunto de costumes que dele derivava, se dissolve nos fins do século XV, pelo advento das monarquias modernas.  - Do mesmo modo também a pintura holandesa se desenvolve no momento glorioso em que,  à força de obstinação e de coragem, a Holanda acaba de se libertar da dominação Espanhola, combate a Inglaterra com armas iguais, e se torna o mais rico, o mais livre, o mais industrioso, o mais próspero estado europeu; e vimo-la decair no princípio do século XVIII, quando a Holanda, passando a um segundo plano, deixa o primeiro à Inglaterra, e se limita a ser uma casa bancária e comercial bem organizada, bem administrada, pacífica, em que o homem pode viver à sua vontade, como burguês prudente, isento de grandes emoções e de grandes ambições. - Finalmente, a tragédia francesa aparece quando a monarquia regular e nobre estabelece, sob Luiz XIV, o império das conveniências, a vida da côrte, abela representação, a elegante domesticidade aristocrática, e desaparece quando a sociedade nobiliárquica e os costumes de antecâmara são abolidos pela Revolução. 
                 Desejava tornar-vos sensível, por uma comparação, este efeito do estado dos costumes e dos espíritos sobre as belas artes. Quando, partindo dum país meridional, vós subis para o norte, notais que entrando numa certa zona se vê começar uma espécie particular de cultura e uma espécie particular de plantas; ao princípio o aloes e a laranjeiras, um pouco mais tarde a oliveira ou a vinha, em seguida o carvalho e a aveia, um pouco mais longe o abeto, por fim os musgos e os lichens.  Cada zona tem a sua cultura e a sua vegetação próprias; ambas elas começam no começo da zona e acabam no fim da zona; ambas lhe estão estreitamente ligadas. É ela que é a sua condição de existência; é ela que, pela sua presença ou pela sua ausência, as determina a aparecer ou a desaparecer. 
                 Ora, o que é a zona, senão uma certa temperatura, um certo grau de calor e de humildade, numa palavra, um certo número de circunstâncias reinantes, análogas no seu gênero ao que nós chamávamos ainda agora o estado geral do espírito e dos costumes? Assim como há uma temperatura física que, pelas suas variações, determinam a aparição de tal ou tal espécie de plantas, assim há também uma temperatura moral que, pelas suas variações, determina a aparição de tal ou tal espécie de arte. E assim como se estuda a temperatura para compreender a aparição de tal ou tal espécie de plantas, o milho ou a aveia, o aloes ou abeto, assim é preciso estudar a temperatura moral para compreender a aparição de tal ou tal espécie de arte, a escultura pagã ou a pintura realista, a arquitetura mística ou a literatura clássica, a música voluptuosa ou a poesia idealista.  As produções do espírito humano, como as da natureza viva, não se explicam senão pelo seu meio. 
                 Eis o estudo que este ano me proponho fazer perante vós para a história da pintura na Itália.  Tratarei de recompor aos vossos olhos o meio místico em que se produziram Giotto e Beato Angélico, e para isso ler-vos-ei os trechos dos poetas e dos escritores em que se pode ver  a ideia que os homens desse tempo faziam então da felicidade, da infelicidade, do amor, da fé, do paraíso, do inferno, de todos os grandes interesses da vida humana. Encontraremos esses documentos nas poesias de Dante, de Guido Cavalcanti, dos religiosos franciscanos, na Lenda dourada, na Imitação de Jesus Cristo, nas Fioretti de São Francisco, nos historiadores como Dino Compagni, nessa vasta coleção de cronistas reunidos por Muratori, e que pintam com tanta sinceridade os ciúmes e as violências das suas pequenas repúblicas. - Em seguida tratarei de recompor aos vossos olhos o meio pagão em que, século e meio mais tarde, se produziram Leonardo Da Vinci, Miguel Ângelo, Rafael, Ticiano, e por isso vos lerei, quer nas memórias dos contemporâneos, de Benvenuto Cellini, por exemplo, quer nas diversas crônicas escritas dia a dia em Roma e nas principais cidades da Itália, quer nos despachos dos embaixadores, quer enfim nas descrições de festas, de mascaradas, de recepções solenes, fragmentos notáveis que vos mostrarão a brutalidade, a sensualidade, a energia dos costumes ambientes e, ao mesmo tempo, o vivo sentimento poético e literário, os gostos pitorescos, os instintos decorativos, a necessidade de esplendor externo, que se encontravam então no povo e na multidão ignorante como nos grandes e nos letrados.  
Hipólito Adolfo Taine, crítico, historiador e filósofo francês, nasceu em Vinziers a 21 de Abril de 1828, e morreu em Paris em 1893. Escreveu muitas obras importantíssimas, como: Essai sur les fables de La Fontaine, tese para doutorado, 1853; Essai sur Tite Live, 1855; Voyage aux Pyrenees, 1855; Les pilosofhes fraçais du dix-neuvième siecle, 1856; Essais de critique et d'histoire, 1858; Histoire de la litterature anglaise, 1864; Philosophie de l'art, 1805-1870; De l'ideal dans lárt, 1867; Voyage en Italie, 1863; De l'intelligence, 1870; les Origines de la France contemporaine, 1875-1880, a obra capital de Taine.