domingo, 30 de julho de 2017

MOTIVOS QUE LEVARAM À RENASCENÇA

A RENASCENÇA
(Da profissão de fé do século XIX)
                  O cristianismo tinha pregado à raça do norte, instalada sobre um solo ainda virgem, a doutrina da privatização, da continência, e involuntariamente, sem o pensar, tinha contribuído para desenvolver a economia, e pela economia a riqueza. O homem trabalhava com o sentimento da expiação, unicamente porque o trabalho fora a maldição que Deus lançara sobre ele à saída do Éden. Obedecia ao castigo, o espírito disposto à mortificação, abafando em si a voz do desejo, como uma provocação do "tentador". 
                 O trabalho levantava a princípio, e apenas do produzido pela sua mão, a parte estritamente necessária à sua existência, e restituía o excedente ao solo como novo meio de produção. A riqueza imobiliária crescia assim de hora para hora, sucessivamente aumentada pela mão de obra de cada família. A herdade, a quinta, a represa, a fábrica, saem uma a uma da terra, como uma segunda vegetação. Esta fecundidade, sem cessar aumentada, convidava sem cessar o homem a gozar , pela facilidade de meios ao gozo oferecidos. E, no próprio momento em que a crença plenamente, completamente aceite, por ele afirmada sem sem reserva, sem contestação, no mais profundo do seu íntimo, da sua consciência lhe dizia, lhe gritava por todas as vozes de ar, por todas as pedras do caminho, que o corpo era um farrapo, o bem-estar um pecado, a felicidade um desafio, o luxo uma blasfêmia, a satisfação dos sentidos uma perdição, ele procurava, apesar da ameaça do dogma, apesar do protesto doloroso da sua própria convicção, apesar do perigo, apesar do interdito da igreja, como empurrão, como precipitado por uma força irresistível, por uma nova relação, procurava, isto não basta, invoca com paixão o ouro, a seda, a riqueza, o esplendor, a beleza, a eflorescência da carne e a volúpia da sensação. 
                 Enquanto a sua alma atrasada, inquieta, suspirava, gemia sob velhos dogmas, uteis um dia e agora enganadores, de decadência e de penitência, ele sentia estremecer, transbordar em si uma vida nova, mais forte do que a sua própria crença. Aspirava um mundo novo. Com efeito, o tempo predileto viera.  O sinal de regeneração resplandecia por todos os lados. O coração do homem, revolvido de alto a baixo, esperava o milagre precursor da ideia. O milagre falou.
                  Um homem ia de cidade em cidade, oferecendo aos príncipes da Europa um mundo por um navio. Tinha acuradamente pesado a terra, ao clarão da sua lâmpada, na conche do seu pensamento. Não lhe encontrava o peso que ela devia ter na criação e continuava a definhar em silêncio  no problema. Observava à tarde, no ocaso, o sol mergulhar  na espuma do Mediterrâneo. Onde ia este sublime iluminador do espaço que fugia no horizonte na púrpura da nuvem? Ia visitar, com seu esplendor, uma outra região desconhecida ao nosso olhar? Se a terra era esférica, a lei do equilíbrio assim o exigia. À medida em que o grande visionário prolongava, diante do céu apagado, este interrogatório do gênio do seu próprio pensamento, a sua dúvida interior, sucessivamente esclarecida, tornava, no fundo da sua consciência, uma aparência, uma realidade.  Via ali, na sua frente, nos confins da última estrela, tão seguramente como os olhos do raciocínio, um novo continente. Pula, como que levantando por toda a energia elétrica do planeta. Abre os braços ao espaço e grita: 
                  - Tenho um mundo! 
                  Ouve-lhe o grito o mar e repete-o de vaga até à margem da Atlântida. 
                  O mendigo dos príncipes vagueia, bordão na mão, levando de côrte em côrte o continente do seu pensamento. Nenhum soberano da Itália quis aceitar esse dom dum sonho, e o profeta do hemisfério atlântico ia bater à porta dum outro reino. Tinha fé na sua visão. Abafava no estreito recinto da nossa geografia. A esperança caminhava-lhe na frente, mostrando-lhe o caminho. Segue-a, a fronte radiante, sem escutar o estupido murmúrio da ironia. Encontra por fim uma mulher, uma rainha, que quis contribuir com seu tesouro para a verificação do seu pressentimento. Dá-lhe um navio, e ele parte. 
                  O espírito do progresso, esse conluio universal, involuntário, de conjurados estrangeiros e devotados, sem se conhecerem uns aos outros, tinha já, por uma admirável cortesia a uma simpatia admirável, inventado a bússola, esse relógio do espaço que marca a rota dos viajantes na ponta da sua agulha. Conduzindo por essa muda existência que, do fundo do olvido da Arábia, talvez um colaborador incógnito lhe tinha preparado, o ousado aventureiro desfralda a vela ao sopro do mistério. 
                   Desde dias, desde semanas, que a costa lhe tinha fugido para trás. Ia, ia sempre; a vaga vinha e passava o vácuo ressurgia do vácuo ao seu olhar; o sol nascia e morria sobre a mesma incerteza. A equipagem, diante da imensidão, duvida da existência de uma margem. E julgando que o mundo ia faltar, quis forçar o conquistador de um enigma a reconsiderar na sua temeridade. Mas ele, invencivelmente confinado no seu sonho e por todos os lados envolvido pelo nada, deixava que o vento de Deus lhe impelisse a nave, e observava o horizonte. A terra estava ali, no fim do seu dedo; via-a, podia mostrá-la. 
                    E uma manhã, - a natureza tinha trajado nesse dia as suas vestes de gala, como para um grande dia da humanidade, - o intrépido navegador, viu de súbito surgir da escuma, à proa do seu navio, a terra do seu sonho, ornamentada da palma do trópico, sorridente no esplendor da manhã. A sua noiva tinha sacudido, à sua aproximação, o ramalhete umedecido de orvalho e parecia vir ara ele num efluído perfumado. Reconheceu-a; tantas vezes a tinha visto na meditação das suas vigílias! Deixa escapar a cana do leme cai, fulminado, de joelhos sobre o tombadilho. A carne era muito fraca para suportar uma semelhante alegria do espírito. Depois desta segunda criação, por assim dizer, do continente austral por uma ideia, Colombo regressou à Europa a receber no fundo dum cárcere a recompensa da sua conquista. 
                 Tinha aberto à sua pátria adotiva a porta da riqueza. A Espanha logo fora às pressas sobre os seus rastos amontoar o ouro na estreia do sol. Quando Deus quer atrair a civilização para uma região, esconde ai um tesouro. O eterno Argonauta  do progresso transpõe o abismo para conquistar o mistério.  A Espanha fora primeiro a ambicionar lucro, cujo brilho brilho tentador chamava a humanidade para o ocidente. Mas no dia em que a civilização invadiu a Europa, a esperança, sacudindo a sua asa dourada, tomara o voo, e desaparecera do outro lado do mar, no crepúsculo do ocaso. A Espanha tinha-a perseguido por sua vez e tornara a encontrá-la num vale das Cordilheiras. A esperança de novo fugirá, passados quatro séculos, para emigrar para as margens do outro mar, em frente da Ásia. 

Mensageira mística da caravana do progresso, é ela que lhe indica o seu caminho no espaço. 
                  O ouro é o único sedutor assas poderoso para arrancar o homem do seu lar, e exitá-lo à expatriação. Oferece , com efeito, ao colono uma riqueza imediata que reembolsa em pouco tempo ao decuplo o adiantamento da emigração; para as primeiras despesas de transplantação da raça civilizada ao meio da raça ainda mergulhada na barbaria, e acumula a população espalhada à roda da cratera diante   das suas minas. Semeia aqui e ali, centro de produção ou de permuta; promove o comércio e pelo comércio a cultura; coloniza enfim, em toda a extensão vigorosa e multíplice da palavra colonização.
                 O tesouro escondido do México serviu, pois, imensamente a humanidade, menos por ele propriamente, menos pela sua barra que pela sua influência e pela sua atração. Convidou e deteve a raça europeia na América.  
                 Esta raça poderosa, munida de todas as armas da civilização arrancou desta natureza virgem, de entranhas ardentes, uma vida nova, nova embriaguez. deitou o homem na sua taça a seiva de outra vegetação, e bebeu o aroma de outro sol. Revestiu-se de esplendores e colheu essências desconhecidas à sua primeira pátria. Enriqueceu o seu poder de ser, a sua gama de sensações, de  toda a volúpia, de toda a utilidade que a baunilha, a cana de assucar, a seiva luxuriante do trópico, espalham hoje à roda dele, sobre ele, à sua mesa, no seu festim, à sua cabeceira. Já Vasco da Gama tinha dobrado o cabo da Boa Esperança e, pelo lado oposto, atingido a Asia, pela grande etapa do oeste.  Assim a Europa tinha ao mesmo tempo os dois continentes vencidos, e presos às âncoras dos seus navios. Ela revertera mais tarde sobre a América a quente ambrosia da Asia, a especiaria e o café, para que a fibra do homem do Norte, aquecida à chama e banhada da eletricidade de Meio Dia, mais simpática, mais vibrante à sensação, absorva e repercuta na atmosfera mais entusiasmo e mais gênio.
                   Algum tempo depois outro profeta, um outro Titã revoltado contra a debilidade da nossa natureza, ia visitar Deus e roubava-lhe o segredo da criação. Inventava o telescópio, dava ao homem um sentido mais, que via o que o olha carnal nunca tinha visto: a imensidade escolhida por detrás da imensidade. Ao primeiro olhar do homem que acometia o céu abade a abóbada dos velhos tempos. A estrela, surpreendia na sua nudez, recuou no espaço a séculos  de distância. O espírito da terra sobe às alturas a que ainda não chegara o voo do anjo. Calcula no espaço, um milhão de vezes acumulado sobre o espaço, prodigioso e brilhante limite que Deus colocara no caminho do infinito. 
                  Assim, à medida que Cristóvão Colombo estendia sob os nossos pés o espaço do globo, Galileu, por uma admirável correlação, desdobrava sobre a nossa cabeça o espaço do firmamento. Executavam um  e outro o mandado do progresso; conduziam a humanidade mais para diante na imensidão. Mas o novo prometeu, que tinha conquistado mais do que a chama, que tinha conquistado a luz , que tinha dito à terra: "Move-te!" com escândalo da escritura, tinha desafiado o poder, dai por diante surdo, cego, esgotado com a sua obra e amortalhado no seu progresso. Mas devia explicar a temeridade. O velho dogma lança-lhe a mão e arrasta-o, enfraquecido pelo peso da sua glória, até ao limiar duma igreja. Com mão brutal curva-lhe a fronte na poeira e obriga-o, com a força do braço, a renegar a revelação vivível de Deus vivo. E aquele que era então entre todos o maior, balbucia, os dois joelhos em terra, a rejeição da sua própria grandeza. Logo que a terra ouviu esta injúria à criação, um monge colocou uma mordaça na boca do sábio, para impor o silêncio a este gênio cheio de verdade. Tinha escolhido bem o suplício: o silêncio para um semelhante confiante da eternidade devia ser, com efeito, o mais cruel castigo. 
               A razão humana, a ciência, iam perecer sob a polícia do papado, conjurada com o poder secular para recalcar toda a nova expansão da verdade, se um obreiro, um desconhecido perdido na sombra da multidão, não tivesse tido a ideia de dispor cada letra do alfabeto num grão de metal. Logo que um pensamento acabava de surgir no mundo, sobre uma folha de papel, o operário revolvia a poeira da palavra que fundira no seu cadinho, e, pela misteriosa química da sua inteligência, transformava a letra de mão em letra de ferro, e recompunha o manuscrito sobre chassis. Colocava em seguida o chassis sobre o cilindro, e reproduzia a cada pancada da prensa tantas vezes o pensamento de um só quantos espíritos havia capazes de o compreender no mundo das inteligências.
                 A ciência, até então trabalhosamente transcrita sobre velino, de dispendiosa mão de obra, fora unicamente a distração, a volúpia suntuária das corporações e das aristocracias. Só podia pensar em comunicar com os séculos, o que era assas independente pela sua formatura para adquirir uma biblioteca, porque um biblioteca representava então a existência de muitas famílias. 
                 A imprensa resgata essa desigualdade, esta iniquidade do destino, entre filhos dum mesmo espírito, igualmente nascidos para a ciência. Ao mesmo tempo que a economia, sempre crescente, metia na mão de cada homem a riqueza acumulada dos seus antepassados, Gutemberg metia na outra mão o gênio tradicional da história. Lançava de chofre na alma domais humilde servidor da ideia a alma inteira de humanidade; reconduzia lota a parte de eternidade, eixada para trás no fundo do passado, sobre cada fronte pendida do estudo; abria ao mesmo tempo um imenso auditório, um auditório instantâneo, à ciência e à inspiração.
                Em qualquer lugar em que a voz humana falara para todos, a imprensa tomava essa palavra, quente ainda do sopro do lábio, vazava-a no molde, multiplicava-se sem conta, e lança-a ao mundo como folha da Sibila. Não havia sob o sol um pensamento escrito, manifestado, que não recebesse logo repercussão em simpatia, em admiração, em refutação ou em contradição. Arrebatada pelo vento do espaço até onde podiam chegar os passos do homem, provocava indefinidamente na sua passagem a concorrência e colaboração universal da humanidade. Todo o homem falava ao mesmo tempo por toda a parte, o gênio respondia ao gênio, o relâmpago pedia o relâmpago, a verdade explodia na imensidade. Nenhuma ideia tinha tempo de dormir. Sempre de pé, sempre errante através das nações, pregava, convertia sempre. A atmosfera inteira estava cheia duma perpétua palavra que ia e vinha infatigavelmente, duma a outra fronteira. O Cristianismo tinham fundado na Europa a unidade da crença, a imprensa funda a unidade da razão. 
                A glória deixou de conhecer a incerteza da espera, quebrou a prisão do isolamento, viu com os seus olhos a impressão contemporânea da sua obra, assistiu em vida à sua posteridade, faz convergir sobre ela a admiração do povo pelo confiança no seu trabalho, aumentou o seu gênio pela certeza do seu gênio, ainda nessa vida  pôs um pé na eternidade, pode morrer sem temer a mordedura do tempo sobre seu pensamento. O seu pensamento multiplicado ao infinito, e gravado como sobre o bronze, desafiava dai em diante todos os cataclismos; porque vive amoedado em mais parcelas do que há inteligências. Para o destruir, a mão do homem teria de reavê-lo de cada nação, molécula por molécula. O mesmo valeria retomar gota por gota a água do Oceano. O espírito da morte ainda o não tentou. 
               A imprensa liberta a razão humana da tutela da Igreja, inaugura no mundo a democracia do conhecimento, nivela o sacerdócio interior do pensamento, faz de todo o olhar elevado ao céu um testemunho da Divindade natural, entrega a cada homem o cargo da sua própria crença e transforma a humanidade numa vasta escola, numa vasta reciprocidade de ensino, onde todos, humildes e poderosos, trazem e levam um convicção. Comunhão sagrada de alma com alma, através do tempo, através da distância; carne incorruptível da ideia eternamente servida a todos no banquete da verdade, um dia chegará, não o duvido, em que o homem, mais adiantado, e mais reconhecido, inscreverá religiosamente a tua festa no eucológio do progresso e cantará cada ano o Te Dum da tua vitória sobre o espírito das trevas! A imprensa tinha dominado a ignorância, mas nenhuma potência tinha ainda podido submeter o despotismo esparso do feudalismo. Refugiada e barricada na sua torre, sobre o cimo do rochedo, a raça conquistadora, sempre soberana, deixava o fluxo e o refluxo dos exércitos bater inutilmente na base da sua muralha.  Do alto dos seus castelos, tão numerosos como as colinas, tão altos como a região das águias, desafiava o arco e o ariete, inacessível e sempre pronto a fulminar como o raio na nuvem. A força reunida da população, acumulada em dado momento contra ele, não era ainda bastante para deitar por terra esta pedra de opressão que pesava sobre cada vale. Mas, enquanto o senhor dormia, com com o seu orgulho, embalado pelo ruído do vento, um humilde monge triturava na sombra o enxofre e o carvão para distrair os ócios da cela; amassa no fundo da sua escudela um punhado de poeira, aproxima-lhe a chama, e a escudela voa em estilhaços. Tinha achado, ou pelo menos demonstrado, recreando-se, o segredo de quebrar a montanha. Pôs na mão do homem o poder do raio, e um dia o barão ouviu na planície uma surda detonação. Um relâmpago demorado, que parecia sair das entranhas da terra, ia feri-lo sobre o seu rochedo; sentia a torre estremecer com o estampido, oscilar, inclinar-se um instante e abater pela base. O dominador, surpreendido e vencido na ostentação da via inviolabilidade, na sua invulnerabilidade, lança ao espaço uma derradeira blasfêmia, e desaparece no abismo, sob a ruína do seu castelo. 

                    Alguns séculos depois, restava apenas deste mundo de terror, que por tanto tempo tinha pesado sobre a França com o peso dos seus baluartes, uma torre meio desmantelada, para testemunhar ainda o passado. Essa torre, suspensa sobre o abismo, cascata imóvel, caía pedra por pedra no fundo do barranco. A hera envolvia-a numa fúnebre roupagem trêmula em que gemia um lamento eterno. De tempos em tempos, um falcão, calvo e fatigado de viver, vinha terminar o voo sobre a última ameia, e ali, inclinado sobre o espaço, a asa meio aberta, o pescoço estendido, chamava com um melancólico grito o vento que já o não podia manter. 
                  O feudalismo e a ignorância estavam dispersos, varridos no mesmo dia, pela mesma vontade. A pólvora do canhão tinha nivelado o território; a imprensa igualara o espírito. O mundo moderno nascia; a democracia já se agitava. Um homem iria breve escrever: "Penso, logo existo!" e proclamar com uma palavra a soberania da razão. 
                 A viagem terminou e o viajante pode dizer consigo: "bem-digo Deus enfim.  O mundo está salvo. Vou aqui levantar a minha tenda. Vou repousar um instante. O progresso está demonstrado. Ah! bastantes vezes maldisse o comprimento do caminho. Sentia, falando, uma dúvida murmurar surdamente sob a minha palavra, no fundo da minha consciência. Dizia-me essa dúvida: Tu queres justiça à civilização e justiça à justiça. Aceitas sucessivamente diante da história a casta, a escravidão, a gleba, a servidão; aprovas sucessivamente o feiticismo, o panteísmo, o politeísmo, o judaísmo, o cristianismo; tens uma desculpa mais ainda, verdadeiro reconhecimento por cada iniquidade, por cada erro que tu, mais tarde, reconheces ser um erro e uma iniquidade."
                 A esta dúvida, eis o que a experiência responde: "Todo o problema da história é uma questão de ótica. Se o historiador, verdadeiro espectador do passado, se vai colocar no ponto de partida, e observa em seguida a humanidade, débil, de certa maneira animal, mergulha na última servidão da estação, da fome, da doença, então compreenderá, bem-dirá toda a outra forma de escravidão menos perigosa, menos custosa, que permite ao homem amontoar no seu caminho mais conhecimentos e mais liberdade. Se se coloca, ao contrário, no ponto da chegada da humanidade, ajuíza de todos os períodos anteriores, e por conseguinte inferiores da civilização, segundo a algumas conquistas  e as últimas transformações da história, falseia o juízo, julga o bem depois, do melhor, calunia necessariamente o passado, sempre condenado a ser alternativamente bem ou mal: bem quanto a este momento; mal com respeito àquele outro. Depois queremos ser justos, devemos dizer: toda a forma que tende a criar um progresso deve ser bem-dita à hora desse progresso; toda a forma que, depois de ter criado um progresso, desparece abolida pelo próprio progresso, é, dai em diante digna de reprovação" Eugênio Pelletan.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

A HISTÓRIA DE MIGUEL ÂNGELO BUONARROTI

Nicéas Romeo Zanchett
Alma solitária e austera, Miguel Ângelo, viveu para criar; arquiteto, escultor, poeta. Nenhum outro artista no mundo teve a versatilidade de seu talento, a amplitude de suas concepções, e a elevação de seu sentimento. 
              
              Miguel Ângelo Buonarroti, nasceu em 1475, em Caprese, que é o berço dos homens de têmpera dura e apta à meditação, porque a terra áspera e a proximidade dos lugares que São Francisco tanto amou, torna-os fortes e tementes a Deus. Seu pai Ludovico, corregedor de Caprese, descendentes de nobres antepassados, homem honesto e carregado de numerosa família, separou-se do filho quando este ainda  era lactente e entregou-o a uma ama em Settignano, perto de Florença, que era , e é ainda, terra de escalpelistas. E Miguel Ângelo transcorreu sua primeira infância entre macetas e escalpelos, da qual mais tarde  se gabava, quando chegou a dizer, num de seus raro momentos de bom humor, que do leite da ama ele adquirira todo o seu amor pela pedra e pela escultura; amor esse que lhe ficara na alma. 
               O menino crescia austero e pensativo, sempre entretido, com aquelas mãos angulosas de montanhês, em traçar figuras no papel; e tanto parecia embevecido naquela tarfa, que o bom Ludovico resolveu retirá-lo de uma escola onde ensinavam gramática para levá-lo ao atelier de Domênico Ghirlandaio.
 Em Florença, àquele tempo, falar de Guirlandaio era falar em pessoa de suma importância; os senhores daquele tempo tributavam ao Mestre sua proteção e as encomendas chegavam-lhe de todos os lados, qual abençoado maná. 
               Miguel Ângelo era criança em anos, mas não no cérebro; de índole séria, não deixava de pintar e esculpir e, naquele ano que esteve junto de Ghirlandaio, aprendeu muitas coisas sobre afrescos e cores. 
               Foi quando lourenço dei Médici, senhor de Florença, homem ilustre e generoso, abriu, em seus hortos, na Praça São Marcos, uma escola de escultura. Acorreram os moços e, entre os mprimiros, Miguel Ângelo, que desenhava e esculpia, ora uma cabeça de fauno, ora uma batalha ente Centauros e Lápitas... sempre com mais entusiasmo, e tal era seu fervor, que o Magnífico Lourenço o tomou sob sua proteção e como companheiro para seus filhos. Foi um períodos realmente áureo para Miguel Ângelo, aquele; as horas de trabalho e de estudos se alternavam agradavelmente àquelas de douta conversação e, como uma grande multidão de  literatos e poetas, entre os quais Agnolo Poliziano, vivia sob o teto dos Médicis, Miguel Ângelo, frequentando-lhes a companhia, foi aprisionando o espírito e crescendo no amor pelas letras, de maneira que, quando, mais tarde, os dissabores da vida lhe forneceram matéria de inspiração, experimentou-se em poesia com muita naturalidade. 
                Morreu Lourenço, em 1492, e muitas coisas mudaram em Florença. Mas não mudou, em Miguem Ângelo, o amor pela arte. Foi, de escapada, muitas vezes, a Veneza e a Bolonha, mas sempre voltava a Florença, a quem muito amava. 
                E para Florença livre, alegre, feliz e próspera, sob o iluminado governo do magistrado Pier Soderinei, Miguel Ângelo trabalhou com afinco. Começou uma obra de afresco para o Salão do Conselho, "A Batalha de Cascina" , entre Florentinos e Pisanos, que, infelizmente, não pode ser concluída, e teve naquela ocasião, como émulo, numa nobre competição art[ística, o grande Leonardo Da Vinci. Mas, dessa obra, que deveria ser maravilhosa para o atento estudo da anatomia humana e pelo dramático movimento do homens, surpreendidos num momento crítico da batalha, foram extraviados também os desenhos. Produziu, entretanto, naquele período juvenil, uma admirável obra de arte, o Davi, simbolizando, no herói bíblico, o espírito de liberdade, que sempre animou Florença no atormentado século XV. 
                O amor na vida de Miguel Ângelo foi algo que não teve muito espaço. Seu grande cérebro estava demasiadamente ocupado com tantos afazeres. Sabe-se que nutria uma cálida e respeitosa amizade, por muitos anos, com Vitória Colonna; nobre dama e poetisa romana de raras qualidades.
                Mas, eis que Roma o chama a si;  e quando chama Roma, não há artista que não corra para lá, orgulhoso em poder, com sua obra, tornar ainda mais rica e mais bela cidade do mundo. 
                Florença, depois da queda dos Médicis, defendeu-se do assédio das tropas imperiais (1527 x 1530). Miguel Ângelo foi nomeado comissário-geral de todas as fortificações, cujos trabalhos dirigiu pessoalmente. 
                 Em 1535 o Papa Paulo III nomeou Miguel Ângelo "arquiteto da oficina de São Pedro". Pelos seus serviços prestados como arquiteto, Miguel Ângelo jamais aceitou pagamento, porque entendia que trabalhava "pelo amor a Deus". 
                 O Papa Júlio II conhecia a fama daquele artista, todo o ímpeto e fantasia, e quis encomendar-lhe o próprio mausoléu; um sepulcro monumental, sobre outro ainda mais magnífico, que devia  ser posto na tribuna da Basílica de São Pedro. 
                 O projeto apresentado por Miguel Ângelo era realmente grandioso; rico de mármores, de baixos relevos em bronze e de ornamentos arquitetônicos, teria ainda, como embelezamento do sepulcro, mais de cinquenta estátuas das quais algumas representando personagens da Bíblia, e outras simbolizando a arte e as ciências. Mas Miguel Ângelo  foi obrigado a arrastar atrás de si "a tragédia do túmulo", porque as enormes despesas e a volubilidade dos Papas que sucederam a Júlio II: Leão X, Clemente VII e Paulo III, sempre lhe dificultaram os propósitos. De fato somente cinco estátuas  puderam ser terminadas: as de Moisés, de Lia, de Raquel e dois "prisioneiros", mas bastam essas para testemunhar o poder criador do grande artista, o qual, trinta e oito anos depois que lhe foi encomendada a obra, agora já com setenta e sete anos de idade, teve oportunidade de escrever: "Eu me considero como quem perdeu sua mocidade , preso a esta sepultura". Miguel Ângelo contava com apenas 29 anos, quando o Papa Júlio II lhe encomendou o mausoléu onde pretendia ser sepultado. Era um jovem de caráter, brioso e resoluto, aborreceu-se por uma pequena questão, com o Papa, mas, anos depois, em 1560 , fizeram as pazes.  Mas a ocasião mais bela, entretanto, lhe foi proporcionada por uma obra de pintura. Quando um papa como Júlio II ordena, deve-se, forçosamente obedecer, e Miguel Ângelo, embora, em sua humildade, se considerava inferior à tarefa que lhe haviam confiado, acedeu em decorar a abóbada da Capela Sistina. 
                 Era o mês de maio de 1508. Quatro longos anos lhe foram necessários para representar, nas vastas paredes, a história dolorosa da humanidade, antes da redenção, o povo de gigantes heróis, a multidão de profetas e sílabas, que ainda hoje deixam o mundo inteiro admirado. Um homem de outra têmpera teria desistido, ante aquela gigantesca tarefa, mas Miguel Ângelo não se deu por vencido. Desde manhã, bem cedo, até altas horas da noite, ele permanecia nos andaimes, lá em cima, supino, enquanto a cor, dada a incômoda posição, lhe fugia do rosto, sempre pintando as grandes cenas bíblicas, que surgiam, em sua imaginação, com a paixão e com a fé que somente um espírito profundamente religioso pode possuir. 
                 Miguel Ângelo gostava de ficar sozinho, quando trabalhava. De seu pincel, saiam figuras horríveis e figuras de admirável expressão e doçura. Eis o grande artista, quando pintava a abóboda da Capela Cistina. Deixou atônitos o Sumo Pontífice, os altos prelados, o povo inteiro, que acorreram para ver a obra, quando ficou terminada; e o próprio Papa Júlio II celebrou missa na Capela Cistina, no dia da inauguração. 
                 Coube, em seguida, a outro Papa, Paulo III, determinar a Miguel Ângelo a decoração da parede central, com a cena do Juízo Universal. 
                Quando Júlio II morreu, foi um duro golpe para Miguel Ângelo; assemelhavam-se tanto, na fibra forte e austera, no amor a Roma e à Arte, e entre o Príncipe da Igreja e o artista existia um sincero vínculo de amizade. 
                Com os Papas que se sucederam, as coisas mudaram, também em Roma, e Miguel Ângelo preferiu voltar para Florença. E eis novamente outra ocasião para embelezar a cidade amada: o cardeal Júlio dei Médici, mais tarde Papa Clemente VII, houve por bem incumbi-lo da arquitetura da Sacristia de São Lourenço, destinada a abrigar os túmulos da família Médicis. Foi Miguel Ângelo quem esculpiu os dois primeiros sepulcros, os de Lourenço e de Juliano dei Médici, colocando neles quatro estátuas, entre as mais expressivas de toda a sua produção artística: o Dia, a Noite, a Aurora e o Crepúsculo. 
                Em 1534, o Papa II quis tê-lo novamente junto de si, em Roma e, pela segunda vez, Miguel Ângelo obedeceu ao chamado. Esperava-o, agora, uma tarefa ainda mais difícil: completar os trabalhos da Basílica de São Pedro. 
                Já fazia muitos anos que os trabalhos se arrastavam, na famosa basílica; com tantos arquitetos que por ali haviam passado, entre os quais, o grande Bramante, Rafael e Antônio de Sangallo, o Moço; mudanças nos desenhos e inovações se haviam sucedido com frequência, mas coube a Miguel Ângelo a glória de dar ao edifício o toque definitivo e de erigir a cúpula que, de rara imponência, se destaca ainda hoje no céu de Roma, como para testemunhar o titânico poder construtivo do século XV.
                 Miguel Ângelo já se sentia fatigado, esgotado fisicamente, pela tremenda tensão de incessante labor. Mas seu espírito não conhecia  repouso; sempre lhe surgiam no cérebro novas obras para esculpir, novas criações, que tornassem insigne a Arte Italiana.  E foi, no declinar de sua proveitosa existência, tão solerte e entusiasmado como o fora em sua primeira mocidade. 
                  Nas vésperas de sua morte, Miguel Ângelo Buonarroti, já nonagenário, esculpiu, na solidão do seu atelier, a Piedade Rondanini, que ficou, porém, inacabada. 
                 No dia 18 de fevereiro de 1564, enquanto os sinos tocavam Ave-Maria, Miguel Ângelo entregava sua alma ao Criador. Morreu tal como vivera; com a maceta na mão, entretido em esculpir Cristo baixando a cruz. E esta foi uma morte realmente digna do grande escultor e do fervoroso cristão que se chamou o grande Miguel Ângelo. 
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A VITORIA DA COLONNA
Poema de Miguel Ângelo Buonarroti
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Há não sei quê divino, força é crê-lo
Nesses teus olhos duma luz tão pura
Que ao vê-los, tive logo por segura
A eterna paz que é meu constante anelo.
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Filha de Deus, nossa alma aspira a vê-lo; 
Desprezando caduca formosura, 
Ela em seu giro eterno só procura
A forma, o tipo universal do belo.
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Não pode amar, não deve, uma alma casta
Fugaz beleza, graça transitória, 
Coisa que o tempo leva, o tempo gasta.
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Nem também alma digna de memória
Pode amar o prazer que bruto arrasta, 
Em vez do puro amor - sombra da glória. 
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A ARTE MEDIEVAL NA FRANÇA

Nicéas Romeo Zanchett 
                 Seis séculos de quase absoluto  silêncio criador sucederam-se à queda do Império Romano o Ocidente; somente na Itália se continuava, embora esporádica e toscamente, a produzir algo de novo, a escrever, a construir. Na França, a primeira nação européia - excluindo-se a Itália - que criou uma arte própria, surgiram, no século XI, as primeiras igrejas românticas, escuras e maciças, no estilo das basílicas italianas do século IX. Os arquitetos, que aviam olvidado as áureas regras de Vitrúvio -(As construções de imponentes catedrais góticas empenavam, quase sempre, por mutos decênios, as economias citadinas mobiliando legiões de pedreiros, canteiros, escalpelizadores, vidraceiros e escultores.) - tinham sido obrigados a erigir paredes de enorme espessura, para garantir a estabilidade do edifício (que frequentemente ruía devido a erros de cálculo); isto conferia às catedrais românticas aquele aspecto de solidez, que as distingue, ainda hoje, das demais construções. 
                  Os erros serviriam de guia: gradualmente, também  os arquitetos franceses e laboravam seu próprio estilo e elevaram, cada vez mais alto, suas construções, delineando, assim, aquele estilo gótico que tez escola na Europa e que deu maravilhosos exemplos de arquitetura sacra.  Essas catedrais, enormes com relação aos edifícios que as circundavam, absorviam, muitas vezes, por vários decênios, as economias e os trabalhos de uma inteira cidade, chamando de toda a parte escultores, técnicos em vitrais, entalhadores; assim, a par da arquitetura, prosperou, naquela época, na França, a escultura, enquanto bem escasso relêvo teve a pintura, reduzida a bem poucas decorações de altar e preciosas miniaturas de livros, ricas de cores vivas e ingênuos detalhes (basta recordar Dante, que dizia "- quel l'arte ch'alluminare é chamadata im Parisi"). 
                Nascia, naqueles últimos séculos da Idade Média, o idioma francês, produto da fusão de elementos latinos com o primitivo idioma céltico: floresciam, na Provença, delicados poetas, os trovadores, que alegavam as côrtes feudais, com suas elegantes canções, baladas e trovas, acompanhadas suavemente pelo alaúde. Bertrand de Born, Arnaud Daniel, Jaufrée Rudel, Bernarde de Ventadorn, versejadores de aristocrática pureza, que eram conhecidos também nos países vizinhos. Alguns deles estiveram nas côrtes italianas, como Rmbaldo de Vaqueiras, e contribuíram para o impulso da lírica peninsular até então presa aos esquemas latinos.  Naquela época, floresceram igualmente os longos relatos cavalheirescos,  onde se descreviam as proezas dos Pares de Carlos Magno ou dos Cavaleiros da Távola Redonda, narrativas originárias da Bretânia e da Provença, e aquele famoso Romam de la Rose, uma espécie de alegoria de mais de vinte mil versos, composto, nos meados do século III, Guillaume de Lorris e Jeam de Meung e traduzido para o italiano por um tal Durante, que alguns chegaram a identificar com Dante Alighieri. 
                 Essa notável riqueza artística e literária poderia fazer-nos pensar num período medieval gentil e cortês, como os imaginavam os Românticos do século passado; na realidade, porém, como já vimos, arte e literatura eram apanágio dos feudatários, ao passo que a burguesia e a plebe jaziam na mais completa ignorância, sobrecarregadas de taxas e trabalho, contentando-se, quanto à arte, em admirar os arabescos e os anjos esculpidos nas fachadas dos templos, a assistir, na praça das aldeias ou nas ruas das cidades, aos mistérios (espetáculos sacros, representados por atores nômades) ou ouvir, boquiabertos, um contador de histórias, que descrevia as façanhas de Reinaldo ou de Orlando. Mas, já a burguesia começava sua desforra espiritual: as Universidades, surgidas imitando as italianas, criavam, na França uma aristocracia do pensamento, que logo iria contrapor-se validamente àquela das armas.  Alegres e despreocupados, de bolso vazios, os universitários vagavam pela França cantando suas canções e discutindo teologia e direito. Nascia, com eles, a nova Europa, livre das brumas medievais, pronta para receber o vento fresco da Renascença.
                A arte de miniaturar os grandes livros de pergaminho prosperou na França; os livros, escritos a mão, quase sempre sobre pergaminho, eram um gênero de luxo, reservado somente aos nobres e às bibliotecas; esplendidamente miniaturados (uma arte tipicamente francesa) eram, via de regra, verdadeiras obras primas, de valor inestimável. 
                A Sorbona, isto é a faculdade de teologia de Paris, congregava, na Idade Média, a elite da mocidade estudiosa da França. Os moços universitários foram os prisioneiros da renascença francesa. 
  
     

A RENASCENÇA ITALIANA

                                        Uma aula fantástica do professor Paulo Villari escrita á muitos anos que aproveito minha obra sobre a  A Arte Universal para homenageá-lo e agradecê-lo. É de extrema importância para as novas gerações.
Resgatar essas obras antigas é muito importante para que as novas gerações criem uma verdadeira visão da verdadeira Renascença. Elas estarão disponibilizadas, em todo o mundo, pela maravilhosa tecnologia que hoje a internet nos permite. 

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                 Na história da literatura, a Renascença italiana é o período que começou com as obras latinas de Petrarca e se aproximava do seu fim quando vieram à luz as primeiras obras de Machiavelli e Guicciardini. Abraça uma grande parte do século XIV, todo o século XV, e tem uma grandíssima importância, porque então o pensamento, a cultura italiana sofreram uma profunda transformação; exerceram uma grandíssima influência sobre toda a Europa. 
                 À primeira vista vêem-se, porém, nela estranhas contradições. Os italianos que com a Divina Comédia, com a lírica de dante e de Petrarca, com o Decameron, tinham dado prova de grande originalidade, e se  elevaram a uma altura Verdadeiramente gloriosa, pareceram de repente com arrependidos, ARRIPIARAM caminho; pareceram desprezar aquela linguá que tinham empregado com tanta honra. Queriam escrever em latim as próprias cartas familiares; mudaram mesmo os seus nomes para tomar os dos gregos ou dos romanos. Não fizeram outra coisa senão ler, imitar, traduzir, Lívio, Tácito, Platão, Aristóteles. 
                  Ao lermos a história literária de Tiraboschi, vemos desenrolar diante de nós uma série interminável de escritores eruditos, todo aclamados, todos convencidos da sua própria grandeza; elogiam-se uns aos outros quando não tem entre si controvérsias literárias, porque então dilaceram-se sanguinosamente. Todos faziam mais ou menos a mesma coisa: traduções do grego para o latim, longas dissertações e discursos, sobretudo orações fúnebres, com citações e imitações contínuas dos antigos gregos e romanos. Pareciam florilégios formados pela união dos apontamentos que tinham tomado ao lerem os clássicos. Pensavam que era fazer-se um grande elogio dizer-se de um deles: verdadeiro macaqueador de Cícero! Quando o seu biógrafo e livreiro Vespasiano de Bisticci queria exaltar um deles até ao nais alto ponto e louvor o discurso que tinha ouvido com grande prazer, costumava exclamar:"Tem uma memória divina! Não houve autor grego ou romano que ele não recordasse naquele dia! " Até as suas epístolas, escritas geralmente para ser publicadas, eram compiladas do mesmo modo. Dizia-se mesmo que uma carta latina do secretário Coluccio Salutati valia mais para a República do que um esquadrão de cavalaria. Não há um único grande poeta prosador italiano daquele tempo que possamos citar. A própria Divina Comédia era tida  em pouca conta, porque não era escrita em latim. Acabamos, pois, por nos convencer de que se trata dum período de pedantismo e de decadência, quase duma estranha aberração do espírito italiano. 
                  Mas por que é então que de todas as partes da Europa nos veem admirar e aprender conosco? De Oxford, de Paris, de Viena veem os estrangeiros a Florença, a Roma, a Pádua, estudar com os nossos eruditos para levarem para as suas pátrias os germes fecundos da nossa erudição, que eram por toda a parte entusiasticamente escolhidos. E como foi que, quando nos fins do século XV cessa a erudição e se torna a escrever em italiano, começa de repente um outro período da literatura nacional, fecundo e verdadeiramente original?  O espírito italiano aparece então como animado duma nova vida, rejuvenescido e revigorado. Emancipa-se da peias medievais, cria a prosa científica e e ciência política. A história moderna adquire a sua forma definitiva, abandonando a forma material e mecânica da crônica. O método experimental é iniciado pelo gênio verdadeiramente portentoso de Leonardo Da Vinci. Nasce a filosofia moderna. Escreve-se o Orlando Furioso de Ariosto. 
                      É uma multidão numerosa, crescente de prosadores e de poetas, que despertam a admiração do mundo civilizado. Não falamos aqui das belas artes, que, seguindo o mesmo caminho, progrediram ao lado da literatura como manifestações do mesmo espírito nacional, e encheram o mundo de entusiasmo que continua até hoje. Deve-se concluir, pois, que este período não foi de pedantismo e decadência, mas antes de profunda transformação e de renovação. A verdade é que a erudição italiana não começou de nenhum modo em oposição aos três grandes escritores do Trecento, Dante Petrarca e Boccácio, nem intentou abandonar a via que eles tinham trilhado. De fato toram eles até que a iniciaram. Dante já era cheio de admiração pela antiguidade; Vergílio é o seu fiel guia do Inferno. É verdade que, sendo pagãos, os grandes escritores e pensadores da antiguidade são irremissivelmente condenados, mas as penas cruéis que torturaram os réprobos não lhes são aplicadas, e o Inferno transforma-se numa mansão horrorosa. No seu trato De Monarquia Dante diz que não há nas histórias de todo o mundo nenhuma que seja maior do que a da República e do império romano. A história de Roma antiga é para ele um milagre contínuo, diretamente operado pela divina Providência. Petrarca é depiis o iniciador, o fundador da educação. Ela parece brotar, como por expontânea e necessária evolução, do seio mesmo da nossa literatura nacional. É como uma nova educação, um meio empregado para transformar o espírito italiano e com ele o de toda a Europa, emancipando-o da idade média. Para fazermos uma ideia claro deste movimento, não nos devemos contentar em examinar em massa todos os eruditos; o que devemos é escolher dentre eles os que tem verdadeiramente um espírito original, e não repetem mecanicamente as ideias comuns, antes dão às suas obras um cunho próprio, obtendo resultados inesperados e novos. 
                  A poesia italiana tinha, por uma espécie de inspiração divina, emancipado o espírito humano no misticismo medieval, conduzido à observação da realidade, ao estudo da natureza, da sociedade, do homem, à fiel reprodução das suas paixões. Mas a prosa não estava ainda inteiramente formada. Não se sabia escrever a história propriamente dita. A filosofia e a ciência política não se tinham ainda podido emancipar a forma escolástica.  
                Não existia uma verdadeira linguagem científica italiana. As cartas familiares também não tinham encontrado a sua forma própria.  Quem lê o canto de Francisca de Rimini ou do conde Ugolino, crê ler uma poesia moderna, quem lê a Monarquia ou o Convito sente-se continuamente transportado à Idade Média. Era, portanto, necessário completar, generalizar a obra iniciada pela poesia. Mas então viu-se que já essa tarefa tinha sido realizada pelos antigos. Uma página de Cícero, comparada com uma de Sã Tomás parece de fato moderna. O Apolo do Belveder colocado ao pé dum Cristo de Margaritona ou de Cimabue parece a revelação da natureza, iluminada pelo sol, ao pé de convenções e combinações artificiais. Bastava então imitar os antigos. E todos os espíritos cultos se lançaram de repente nessa tarefa, com   uma avidez, com um ímpeto irresistível. Assim começou o período da erudição ou do Humanismo, que foi chamado também de Renascença, porque se ocupou em fazer renascer a antiguidade. 
     A primeira e mais imediata consequência desta imitação dos antigos foi a  observação contínua, o estudo geral da natureza, da realidade, da sociedade, do homem. O olhar volve-se de céu para a terra. Os Gregos e os Romanos não desprezavam a cidade deste mundo pela cidade de Deus, a pátria terrena pela celeste. A beleza do corpo, da natureza, admiravam-na. Não desprezavam os prazeres dos sentidos. Nas obras latinas de Petrarca prova-se dum modo verdadeiramente admirável como o estudo da antiguidade conduz ao estudo da natureza. Ele visita, observa, descreve os arrabaldes de Nápoles com Virgílio na mão que os descrevia também. Foi o primeiro que se mostrou verdadeiramente encantado com a beleza da paisagem. Demora-se a contemplar o mar em tempestade; trepa aos montes e fica encantado com a beleza da vista. A cada passo observa os costumes, as personagens mais singulares que se apresentam, e descreve-os com paixão e com precisão. É não só o primeiro erudito; mas nele se achem em germe todas as qualidades próprias dos melhore eruditos; todas as várias, multíplices tendências que depois dele terá a erudição. Combate a Idade Média em todas as suas formas. Combate a autoridade absoluta de Aristóteles, o método artificial seguido pelos médicos e pelos juristas do seu tempo. Mas tudo isto não é ainda a consequência de uma nova direção, de um novo método científico. O que ele ataca verdadeiramente é a forma escolástica, porque essa é bárbara, e ele quer a forma clássica, a única bela, a única verdadeira. 
                 Depois dele a erudição italiana devia passar do estudo da forma à emancipação do espírito humano, proceder à procura de um método, de uma ciência nova. E primeiro do que tudo, começou a formar-se, a educar-se  entre nós o espírito crítico, que se tornou o espírito do século. O estudo dos códices antigos e a necessidade de os comparar ente si, para decidir  qual era a ligação a adotar na publicação dos textos, foi o primeiro esboço da crítica. E esta crítica tornava-se ainda mais arguta quando se tratava de uma obra de Platão ou de Aristóteles , porque era necessário para uma decisão ter claro conhecimento do sistema filosófico do autor. Os eruditos estudavam pois, admiravam todos os filósofos antigos: Platão, Aristóteles, Plotino, Porfírio, Confúcio, Zoroastro. Isto trazia a necessidade de confrontar os vários sistemas, para determinar o valor relativo e escolher a solução preferível dos granes problemas que se apresentavam à mente humana. E trazia a necessidade de confiar na própria razão, que assim assumia finalmente a sua independência. Foi essa a grande conquista intelectual da Itália. Na Idade Média os problemas filosóficos eram resolvidos pela revelação, formulada pela teologia. A filosofia, serva da teologia, não devia fazer mais que expô-la, aceitando a solução já dada, explicá-la, demonstrá-la com o raciocínio ou seja com a lógica de Aristóteles, que vem a ser por isso a autoridade incontesta. A Renascença começou a afrontá-la pela primeira vez com a pura, livre razão, que tinha adquirido a plena consciência de si. Foi este o principal fundamento da nova cultura. E o processo pelo qual a Itália o descobriu, com o auxílio e o estudo da antiguidade, foi imitado por toda a Europa. Só por meio do passado a humanidade chegou à conquista do seu futuro.  
                    O primeiro que manisfestou uma verdadeira independência e originalidade filosófica, sem ser no entanto fundador dum novo sistema, foi Lourenço Valla (1405 x 1457). Há um grande conhecimento do grego que ele traduzia admiravelmente para o latim, e com uma grande elegância, unia uma sagacidade crítica bastante singular. As questões filosóficas, gramaticais e retóricas, de que muito se ocupou, mudara-se sob a sua pena em qustões lógicas, filosóficas.As leis da linguagem e da composição, dizia ele, não se podem achar, nem compreender, se não se reduzem primeiro as leis do pensamento. E assim assistimos nas suas obras ao processo pelo qual a filologia conduz à filosofia. Valla era um espírito arguto, original e mordaz, muitas vezes mesmo paradoxal. Para combater o misticismo e o ascetismo medieval, para reconhecer o valor que tem as leis e a voz da natureza, exalta no seu livro De Voluptate et vero bono os prazeres dos sentidos, chegando mesmo até à obscenidade. Combatendo asperamente os juristas do seu tempo, desencadeando uma verdadeira tempestade,   também ele como Petrarca, condena a sua bárbara forma. Para compreender a leia romanas, dizia ele, é preciso conhecer e  saber escrever bem a língua de Cícero. É absurdo pretender expô-las, comentá-las, entendê-las com a vossa linguagem. Mas não ficava por aqui, dizia ainda: "é necessário sabê-las ligar e interpretar com a história de Roma, de que as leis fazem parte, e de que elas emanam. E assim indicava já o método histórico. A sua agudez crítica manifestou-se do mesmo modo no escrito a pertença doação de Constantino. Combate-a não só a histórica e juridicamente, não reconhecendo ao Imperador o direito de alinear a terra só império, mas também filologicamente, demonstrando que o latim do pertenço documento não podia ser do tempo em que se queria fazer crer que ele tinha sido escrito. 
                 Um outro filósofo que gozou de grande fama no século XV foi Marsílio Ficínio (1433 x 1499), o fundador da Academia Platônica, o tradutor de todas as obras de Platão, que, apresar de ser a regra de São Lourenço, o admirava a ponto de ter luzes diante do seu busto. Foi autor de muitas obras filosóficas, a principal das quais queria intitular primeiro Teologia Cristã, mas depois intitulou Teologia Platônica. Essa obra devia conter todo o sistema de Ficino. Quem a lê e pensa na reputação universal de que o autor então gozava, no grande número de sábios estrangeiros que vinham de todas as partes da Europa ouvir as suas lições no Estúdio florentino, fica profundamente desiludido. Não há nesta obra nenhuma verdadeira originalidade filosófica. O autor, no fundo, não faz senão ataviar a filosofia neoplatônica de Plotino e de Porfírio. O mundo aparece-lhe povoado por "terceiras experiências" ou sejam "almas racionais", diferentes porém da alma imortal do homem, com que Deus o dotou diretamente. Essas tem ente i relações mútuas; atam umas sobre as outras, e também sobre a do homem, o que explica, segundo Ficino , as influências astrológicas, a que ele prestava grande fé. Todas essas almas da água, do ar, da terra, dos astros se reúnem depois numa única, que é como a alma racional do universo. É uma espécie de panteísmo, de que Ficino se não dava inteiramente conta, pois que ficou sempre crente e católico. Com este panteísmo, o conceito de Deus pessoal e criador  começa lentamente a transformar-se no conceito do absoluto, que cedo se acha difundido por toda a literatura italiana do tempo. 
                 Mas um caráter bastante singular e próprio desta filosofia, e que de certo modo nos explica a sua grande popularidade, era a continuada alegoria de que fazia uso. Por meio da alegoria, Ficino pretendia sustentar que entre a "terceira essência" dos astros, os deuses pagãos e os anjos havia uma grande semelhança, tão grande que podiam confundir-se. Com igual razão entre os conceitos fundamentais do cristianismo e do paganismo (à luz duma filosofia bem entendida) não havia, pois, diferença essencial.  Em Platão, na Eneida  de Virgílio, encontrava-se claramente delineados os dogmas principais do cristianismo, que as sílabas tinham profetizado. E nisto chega a um exagero que algumas vezes cai no ridículo. Mas era precisamente isto que então despertava maior admiração e lhe dava uma importância verdadeiramente histórica. Segundo o conceito teológico medieval, o paganismo, como toda a história e toda a cultura greco-romana, ficava fora do mundo verdadeiramente real, isto é, o mundo cristão. Era qualquer coisa de profano, quase diabólico, nada mais do que erro e embuste. Tudo isso se afigurava surpreendentemente desolador para aqueles que, no século XV, admiravam a antiguidade sobre todas as coisas. Ora, Ficino, por meio da sua alegoria platônica, que formava parte integralmente do seu sistema filosófico, vinha remir a antiguidade pagã, dando-lhe um lugar próprio na história do espírito humano, reconhecendo-o como uma parte essencial do nosso ser intelectual e moral. E isto parecia então uma grande revolução, que vinha estabelecer a paz, restaurar no homem a harmonia espirital. Isto implica o grande sucesso que teve o sistema de Ficino, não obstante a sua indigência filosófica.  Pico de Mirandola foi um dos seus mais ardentes campeões e propagadores, obtendo também um enorme favor.  E na verdade se, como sistema filosófico, a obra de Ficinio desapareceu sem deixar de si nenhum vestígio profundo, o seu conceito da relação histórica que existe entre a antiguidade e a sociedade moderna, sobrevive ainda, porque corresponde à realidade. E também isto foi um dos grandes serviços que a erudição italiana prestou à civilização.
                   Ente os escritores que tiveram então grande importância, são dignos de menção Poggio Bracciolini (1380 x 1459) e Leonardo Aretino (1369 x 1444), ambos secretários da República florentina. Tanto como o outro, são os dois historiadores mais célebres entre os eruditos. Bracciolini  foi sobretudo um literato, um latinista elegante; percorreu toda a Europa rebuscando códices antigos e descobriu muito deles. Nessas suas viagens descreia os costumes, os países que ia visitando. De Constança narrou minuciosamente o suplício, de que foi espectador, de Jerônimo de Praga; de Baden descreveu-lhe os banhos já estão bastante célebres, e os costumes alemães. Noutra parte da Alemanha descrevia a vida dos senhores feudais, observando como o seu arsenal e a sua adega tinham para leles o lugar que as bibliotecas tinham para os senhores italianos. Na Inglaterra fala dos longos, eternos jantares, acabados os quais se ficava ainda à mesa continuando a beber durante várias horas. Para não adormecer tinha de lavar, de vez em quando, os olhos com água fresca.Mas não se limitava só a isto, pois também observou algumas vezes as instituições com grande argúcia. Bracciolini foi talvez o primeiro que notou a grande diferença que existe entre a aristocracia inglesa e a do continente, sobretudo francesa. A aristocracia inglesa, observou ele com grande espanto, não é uma casta absolutamente separada da burguesia.  Se um banqueiro ou um industrial, depois de ter feito fortuna, se retira dos negócios, compra uma vila com um parque, e vive dos seus rendimentos no campo, é acolhido entre os nobres ingleses como um dos seus e pode facilmente aliar-se com eles pelo casamento. Isto pareia-lhe muito singular., apesar de vir de uma república democrática como Florença, que tinha destruído inteiramente o feudalismo. Nos nossos dias Tocqueville fez a mesma observação no seu l'Ancien régime et la Révolution, quando com profunda penetração, comparando a aristocracia inglesa com a francesa, projeta uma luz tão viva sobre as origens da Revolução. Esta faculdade descritiva, esta avidez observadora, eram próprias dos eruditos. Enea Sílvio Piccolomini, que foi depois o papa Pio II, não só descreve admiravelmente as paisagens italianas, como a sua descrição dos costumes de Viena são tão vivas e tão fieis que ainda hoje o guia da cidade a reedita como retrato fiel do caráter da população. 
                  Por seu lado Aretino, cujo nome era Leonardo Bruni, foi um grande  tradutor do grego, que tornou populares as obras de Platão e de Aristóteles. Também escreveu uma história de Florença desde as suas origens até 1401, e que depois foi continuada por Bracciolini. Ambos eles são os primeiros que, imitando Tito Lívio, passam da crônica à história. 
                 A obra de Aretino tem muito maior importância, porque começa nas origens da cidade, sendo ela o primeiro que põe de parte todas as lendas fabulosas que sobre elas escrevem Villani, Malespinie, os outros cronistas. Em vez disso procura nos clássicos, todas as notícias que pode encontrar sobre os Etruscos  e sobre Florença como colônia romana.  Tanto ele como Bracciolini procuram a conexão dos fatos, para dar unidade e dignidade histórica às suas narrações; mas a que eles vêem e que mostram é mais uma conexão literária que lógica de causas e efeitos. Além disto, vestem sempre as suas personagens à romana, colocando-lhes na boca discursos magniloquentes, imitados de Lívio e de Salústio. Dão a todos os acontecimentos proporções grandiosas. A guerra de Florença e de Pisa devia parecer-se com a guerra púnica, doutro modo a narração não teria tido aquela dignidade histórica que procuravam constantemente.  
                 Entre os eruditos, aquele que na verdade uniu a uma grande erudição histórica uma real penetração crítica, foi Flávio Biondo. Na história sobre a queda do Império romano e em outras de tempos mais recentes, examina as fontes, compara-as e avalia-lhes a credibilidade. Mas não conhecia o grego, não era um escritor elegante em latim. Eram este então pecados imperdoáveis num erudito italiano do século XV, e fizeram, pois, com que ele ficasse relativamente obscuro. 
                Mas para que a história moderna se pudesse efetivamente  formar, era necessário uma observação mais direta dos fatos e uma mais fiel reprodução deles, uma pesquisa das suas conexões lógicas; e era necessário que se tornasse a escrever em italiano. Para isto contribuíram muitíssimo  os embaixadores, que todos os estudos da Península tinham então em grande número, que a percorriam em todas as direções, que percorriam toda a Europa, observando com enorme penetração os homens, as instituições, os acontecimentos, as suas causas e efeitos. As cartas, os despachos que escreviam então, sobretudo os embaixadores venezianos e florentinos, formam um monumento literário, histórico e político de primeiríssima ordem. 
                   Todos esses embaixadores italianos, e especialmente os Florentinos, escreviam com uma elegância admirável. A sua língua conserva toda a vivaz espontaneidade, o aticismo da linguagem falada nas margens do Arno, linguagem tornada mais correta e gramatical pelo contínuo estudo que se fazia então do latim, e que se tinha aprendido uma construção mais harmônica, mais elaborada. Estas qualidades, junto a outras que surgiram na Itália, educadas pela erudição, foram as que produziram a literatura do século XVI e contribuíram para o seu tão grande esplendor. 
               O século XV teve também os seus poetas, que mais do que todos apressaram o regresso ao italiano na escrita. Entre eles cabe o primeiro lugar a Ângelo Poliziano (1454- 1494), inimitável pela grande elegância da forma. Nas suas elegias latinas a linguagem falada em Florença parece fundir-se de tal modo com o latim que este se transforma quase numa língua viva, dando-lhe a primitiva espontaneidade grega. E as mesmas qualidades se acham nas suas imortais Stanze italianas, que celebram a Justa de Juliano de Médicis. Não são senão um fragmento, e não se deve pretender achar nelas uma grande criação poética. O seu valor reside nas descrições admiráveis da natureza, na forma límpida, cristalina, duma incomparável. A oitava, com ele, adquiriu finalmente harmonia, cor, variedade, qualidades que nunca tinha possuído inteiramente, e que caracterizaram a literatura posterior, sobretudo a de Ariosto. 
             Mas não se deve esquecer neste ponto a Lourenço de Médicis, o grande protetor de Poliziano, e que foi dotado com os mais variados dons intelectuais. Com efeito não foi só um grande homem de estado e um grande Mecenas; mas exerceu na literatura uma influência pessoal com os seus próprios escritos. E isto sobretudo com as suas poesias italianas, em que deu prova duma grande habilidade descritiva, especialmente quando fala da vida campestre, mostrando sempre uma singular espontaneidade e elegância. A Lourenço de Médicis (1448 - 1492) se deve, em parte, o regresso à escrita em língua italiana, que com o seu exemplo pôs em honra entre os poetas nossos do seu século. 
                 Há ainda um outro poeta que viveu também na corte de Lourenço de Médicis, e com o seu poema herói-cômico, o Morgante Maggiore, foi o iniciador dum novo gênero de produções poéticas, o único gênero que pode dizer-se um produto próprio do século XV, e que todavia parece estar em direta oposição com ele. Efetivamente, o poema herói-cômico  ocupa-se das guerras religiosas contra os infiéis, que tinham ocupado os lugares santos; e a Itália do século XV, entre um tão grande fervor de estudos clássicos, no meio de tanta admiração de escritores pagãos, tinha-se tornado profundamente cética em questões religiosas. A sociedade que ali se descreve é a sociedade cavaleiresca, e a cavalaria não floresceu nunca na Itália, que tinha tomado parte pouco ativa nas Cruzadas, e no século XV tinha já destruído inteiramente o feudalismo; não se pensava senão nos Gregos e nos Romanos. 
                  Como é que no meio duma sociedade destas pode surgir um poema cujos elementos constitutivos lhe são realmente estranhos? 
                 A verdade é que o assunto desse poema não é criação italiana, mas francesa. A Itália importou-o do lado de lá dos Alpes e fê-lo seu, dando-lhe uma forma nova, sem todavia lhe alterar propriamente a substância. O que juntou de seu foi um certo sorriso irônico, que surgia espontaneamente no íntimo dos escritores, em presença dum mundo poético que lhes era a eles absolutamente estranho, demasiado fantástico para o seu espírito céptico e positivo. Mas o que juntou principalmente, e foi esse na realidade o seu mérito, foi um estudo da verdade, uma descrição da natureza, numa pintura de paixões humanas. E isto resplandecia tanto mais vivamente no meio daquele mundo fantástico, frequentes vezes vago, nebuloso e inconsistente. Aqueles homens tão verdadeiros, aquelas fisionomias tão nitidamente desenhadas, aquelas peleias pintadas com tanta vida, aquelas reproduções da natureza tão admiráveis que parecem desprender-se pela primeira vez de um caos artificial e confuso, apresentam-se aos nossos olhos como uma nova revelação do verdadeiro e do belo. Foi no poema herói-cômico a obra própria da Itália do Renascimento, e digamos que se acha em perfeita harmonia com a cultura e sociedade daquele tempo, 
                   Ao Margante Marggiore de Pulci (1432 - 1484) seguiu-se o Orlando Inamorato de  de Mateus Maria Boiardo, (1434 - 1494) em que já é bastante maior a originalidade poética, a força da fantasia, a fecundidade da imaginação. É maior porém o gosto literário, e portanto a elegância da forma, que nas obras de arte é sempre um elemento de importância vital. O seu poema foi continuado pelo Orlando Furioso, que imortalizou Ariosto, e que entra já num período novo da literatura italiana, que alguns continuam a chamar Renascença, mas que é bastante diverso do período precedente. 
                 Se fizermos agora um apanhado de tudo aquilo que temos dito, achamos que os elementos principais que se podem dizer um resultado específico da erudição italiana da Renascença são: a independência da razão; um estudo sincero, sem preconceitos, da natureza, da sociedade, do homem e das suas paixões; um espírito crítico e de livre exame; uma febre de saber; uma grande fé na força da razão; uma língua clara espontânea e correta, que o aturado estudo do latim tornou mais conexa e mais harmônica. Tais são os elementos que a Itália descobriu, e que constituíram o espírito da literatura e da cultura moderna. 
                  

segunda-feira, 24 de julho de 2017

BENVENUTO CELLINI

Nicéas Romeo Zanchett 
               A estranha e legendária figura de Benvenuto Cellini, chegou até nós em estranha e sincera autobiografia, mas sempre permanecera com um símbolo da atribulada época em que viveu. 
               Seu talento artístico legou ao mundo grandes obras escultóricas. Mas existe outro lado desse grande artista que poucos conhecem. 
                Era muito briguento, grande espadachim, boêmio, aventureiro, cheio de vícios. Contudo,graças à sua genial arte, em que punha seu incomparável talento, tudo lhe foi perdoado. 
                 Nasceu em Florença a 3 de Novembro de 1.500, e nesta mesma cidade, faleceu em 13 de Fevereiro de 1571. Seu pai, Giovanni Cellini, era proprietário de terras rurais, e também construía e tocava instrumentos musicais. 
                 "Senhor Michelangnolo  Bandinelli, este é um dos meus filhos;pequeno, como vê, mas desenha maravilhosamente e gostaria muito que lhe ensinasse um pouco de sua arte. Na verdade, ele toca pífaro tão bem que desejaria fazer dele um músico, mas parece que a sua preferência é para esculpir e borrar papéis..." 
                  Foi com estas palavras proferidas por seu pai que Benvenuto Cellini entrou no atelier do Maestro Michelagnolo, onde começou a trabalhar de burile a gravar pedras preciosas. Aos poucos foi se tornando senhor de todos os segredos da profissão; ninguém possuía olho tão experiente em pesar safiras e esmeraldas, nem a mão tão leva para lidar com ouro como aquele adolescente florentino de olhar atrevido e engenho afiado como a lamina de uma espada. Mas era tão ágil com a mente quanto com a língua e com a mão; era briguento e seu punhal facilmente saltava da bainha por qualquer ninharia, por gracejo, ou por um simples olhar que não lhe agradasse. Como era previsto, um certo dia suscitou tamanho alvoroço de gritos e pauladas, que foi obrigado fugir de Florença em direção a  Roma para não ser preso. 
                  Naquela época, a Côrte o papa Clemente VII chamava para junto de si todos os bons artistas e literatos da Itália. Com apenas vinte e três anos, Benvenuto Cellini recebeu a primeira encomenda e fabricou um par de brincos,que provocaram infinitos aplausos, como também uma grande quantidade de inveja pelo seu talento. 
                 Como astuto florentino que era, tinha ótimo trânsito entre os  senhores  arrogantes e vingativos, colegas manhosos e pérfidos; infiltrava-se habilmente nas intrigas e nos mexericos da Côrte; tornou-se amigo de pintores como Guido Romano, Sebastiano del Piombo, Francesco Bacchiacca e com eles perambulava noite e dia pelas ruas da cidade, banqueteando e duelando; era hábil espadachim e,portanto, muito respeitado.  
                Com a deflagração da guerra entre a França e a Espanha, após haver devastado a Itália, aproximava-se de Roma. Certa manhã, o alarme difundiu-se subitamente: "Eles estão aqui, sob as muralhas, já entraram!" Toda a população armou-se, pois já os primeiros lansquenetes irrompiam pelas ruas, ávidos de sangue. Bemvenuto, corajosamente, abriu caminho por entre a multidão apavorada, juntou-se a um grupo, refugiando-se no Castelo Santo Ângelo, armou-se e da torre certeiramente disparava suas espingardas e carabinas; segundo suas palavras, com seu arcabuz matou o Condestável de Bordão, comandante dos invasores. 
                A luta durou cerca de um mês e, durante esse tempo, o bombardeiro Benvenuto Cellini fulminava as trincheiras inimigas com suas "columbrinas" e seus "falconetes" (espingardas), estrategicamente colocadas nas torres do Castelo Santo Ângelo. Mas, em segredo, procurava também fundir o ouro do pontifício para poder ocultá-lo e assim protegê-lo dos invasores. Este feito, que mais tarde foi usado para caluniá-lo, aconteceu em 1527, quando tinha pouco mais de 26 anos de idade. Entusiasmado com esse eletrizante exército, foi tentado a tornar-se soldado errante. 
                Depois de saquearem a cidade, os invasores retiraram-se; Benvenuto, abandonando o rude manejo das armas, voltou a cinzelar vasos e a cunhar moedas, naquele seu atelier, que já era o primeiro da Itália. 
                 Viver entre os poderosos, que por uma calúnia ou um pequeno rancor, eram capazes de matar ou envenenar qualquer pessoa, não era muito fácil naquela época; como era de se esperar Benvenuto granjeara muitos inimigos, e estes tanto sopraram aos ouvidos do Papa Paulo II (que sucedera Clemente VII), que, um belo dia, foi preso por esbirros armados e atirado ao calabouço, sob acusações de haver roubado ouro e jóias dos cofres pontifícios, durante o saque de Roma. 
                 Na cela do castelo Santo Ângelo, Benvenuto tinha como companheiro alguns guardas e um castelão desequilibrado, que muitas vezes se julgava um morcego. Ali, sentindo-se injustiçado, gritava, ameaçava, protestava sua inocência, mas o único resultado que obteve foi ser vigiado ainda mais severamente. Pouco a pouco, em sua mente, foi tomando forma um plano de fuga. 
                 Com um par de tesouras roubadas de um servente, um após outro, os pregos da porta de sua cela, imitando uma cerra de limalha, as cabeças que ficaram salientes; uma bela noite, fez um corda de lençóis que rasgara, abriu vagarosamente sua porta com o auxílio de uma adaga, e deslizou pelos corredores escuros e desertos. A parte externa era muito alta, mas o fugitivo, utilizando-se de sua corda improvisada, fechou os olhos e deixou-se cair. 
                 Sua fuga, no entanto, não teve sucesso e logo foi agarrado e levado novamente ao cércere; com muita alegria, foi recebido pelo louco castelão, que o trancou na cela mais úmida que havia, onde permaneceu durante muitos meses. Em constante luta contra doenças e a tristeza, maltratado pelos guardas e sempre em perigo iminente de ser morto a qualquer momento (conta-se que tentaram matá-lo, dando-lhe comida com diamante triturado). 
                 Finalmente, já bastante fraco, chegou o dia de sua libertação. Benvenuto, já farto das tramas das Côrtes italianas, foi embora para a França. Ali ficou a serviço do rei Francisco I.. Recebido como um fidalgo, com farta provisão e casa própria, o valentão, afinal, viu que apreciavam e davam valor à sua arte e passou a fabricar estátuas de prata e a montar rubis e brilhantes, com redobrado ardor. Mas, também aqui não tardam a surgir aventuras, duelos e pauladas. Sorte dele que o rei, homem  jovial e ousado, sempre fechava os olhos ante suas escapadas e não se cansava de admirar seus talentos, Foi nessa época que criou o famoso saleiro de ouro, de inestimável valor, que cinzelara para o soberano e ainda se conserva em Paris. 
                  Como era natural, com seu orgulho (aliás, bem justificado), o nosso agitado artista ia, aos poucos, criando um ambiente hostil em torno de si, tanto na Côrte como entre seus colegas de profissão; por isso, e também devido à saudade de sua terra, poucos anos depois, Benvenuto regressou a Florença, onde passou a trabalhar para o Duque Cosme dei Médici. Aqui ele pretendia executar sua obra prima, que desde muito tempo torturava sua mente, isto é, uma estátua de Perseu, que iria figurar na Loggia de Lanzi, na maior praça da cidade. 
                  Com muita dedicação, esculpiu o obra que, por longo tempo imaginara. Chegado o tão esperado dia da fusão, a agitação lhe provocou forte febre; por isso, depois de deixar tudo preparado e os ajudantes ido fogo, foi deitar-se um pouco para descansar. Enquanto descansava, atormentado pela ansiedade e pela doença, eis que entra em seu quarto um homenzinho aleijado, que mais parecia ter saído de um pesadelo, e lhe anunciou, com voz estrídula: - Ó Benvenuto, tua obra foi irremediavelmente perdida!
                   Foi como se tivesse recebido uma chicoteada, o artista saltou da cama, vestiu-se às pressas, e correu para a fornalha, onde viu o fogo quase apagado, uma enorme fumaceira e todos os seus ajudantes, lívidos, junto ao caldeirão, em que o metal já se ia coagulando. Benvenuto parecia um demônio enfurecido; mandou reanimar imediatamente as chamas, apanhou todos os pratos de estanho e atirou-os na caldeira, para diluir o metal, até que, com enorme estrondo, a tampa do forno saltou para o ar e o bronze escorreu, fluído e brilhante, ótimo para preencher o molde. 
                    A estátua de Perseu foi sua última grande tarefa, ao menos de que se tem notícia em suas memórias. Embora sua produção tenha sido imensa, bem pouco, infelizmente, chegou até nossos dias. 
                   Sua autobiografia, escrita aos sessenta ano, permanece na mais arguta e cintilante prosa que se pode imaginar. Sua história é testemunhada atualíssima de uma época que figura entre as mais esplendorosas da Itália e do gênio impulsivo desse incomparável artista. 
                 Como muitos o denominaram, Benvenuto Cellini, pode muito bem ser considerado um típico italiano do século XVI. Amado e procurado por poderosos, tais como o Papa Clemente VII, o rei Francisco I de França os nobres florentinos da magnífica corte dos Médicis. 
                 O inveterado aventureiro, por amar a vida, a arte, a luta, a natureza em todas as suas manifestações, fazia falar de si constantemente. Com a mesma facilidade com que criava em torno de si amigos e admiradores, fazia surgir acérrimos inimigos, na maior parte invejosos de seu incontestável talento. 
               Íntimo dos príncipes, reis e papas, poderia ter enriquecido, casado com alguma nobre dama de seu tempo, mas preferia a vida desregrada, a aventura, dai as vicissitudes e perigos que o cercavam. 
                Muitas vezes foi chamado de cínico, devido ao realismo que imprimiu em suas "Memórias". 
                 Como gravador e cinzelador, porém, ainda não foi igualado, embora poucos de seus trabalhos tenham chegado salvos até nossos dias. Escreveu, ainda diversos trabalhos sobre sua arte. 
                Como era natural, inspirou escritores e compositores, que escreveram obras primas sobre sua agitada existência, destacando-se, entre outras, a ópera de autoria de Heitor Berlioz, com libreto de León de Wailly e Augusto Barbier, em dois atos, representada na ópera de Paris, em 3 de setembro de 1838, e que assinalou a estréia do famoso maestro francês nesse gênero. Após várias representações na França, foi levada à cena em outros países da Europa, com relativo êxito. 
                Outra ópera, em quatro atos, de autoria de Eugênio Dias, foi apresentada, em 1880, sendo famosa sua ária "Da arte esplendor imortal..."
                 Como se vê, trata-se de um estranho personagem, que pode ser considerado um retrato fiel da época em que viveu; uma Itália turbulenta, onde proliferavam várias cortes e repúblicas, e surgiam artistas e espadachins que viviam intensamente, pois, geralmente, suas vidas corriam perigo e era preciso aproveitá-las ao máximo... 

domingo, 23 de julho de 2017

O PODER DA ARTE

Nicéas Romeo Zanchett 
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              Desde tempos muito remotos que a arte vem sendo utilizada para persuasão. Tanto na publicidade  comercial como na política, ela é um instrumento de enorme poder. 
              Este instrumento tem sido responsável pela história do mundo ao longo dos séculos. A arte, com suas técnicas visuais, tem garantido o poder a muitos ditadores. Os políticos utilizam-na  para se perpetuarem no poder; portanto, através dela que os rumos da humanidade foram traçados. 
              A arte bem planejada penetra na mente humana numa forma de persuasão subliminar. Guerras e massacres tem acontecido com ajuda dela. 
               A arte de transmitir confiança; a arte de mostrar um futuro promissor; a arte como adorno pessoal; a arte da aparência idealizada, digna de um grande rei, que pode enganar a todos; a arte de mostrar as imagens que queremos ver; a arte usada para contar uma mentira política; a arte nos palácios, como símbolo máximo de poder; a arte de transformar e realçar os feitos medíocres de certos políticos; a arte de criar uma imagem carismática de um rosto odioso; a arte de transformar um ditador sanguinário numa pomba da pez. A mesma arte que cria a pomba da paz, cria o símbolo da guerra.
               DARIO - Grande rei da Pérsia (Pérsia, 521 a.C.- Egito, 486 a.C.) já usava a arte para persuadir. Foi ele o inventor do logotipo que usamos até hoje. Seu objetivo foi criar um símbolo que o representasse em todos os lugares para sempre ser lembrado por seus súditos. 
               ALEXANDRE - O GRANDE - Rei da Macedônia (pela Macedônia, 356 1.C. - Babilônia, 323 a.C.). Ele aperfeiçoou o logotipo de Dario, colocou a imagem do seu rosto nas mãos de todos, utilizando-se da moeda que mandou cunhar em sua homenagem. 
               AUGUSTO - (Caio Júlio César Otaviano) mandou esculpir sua estátua mostrando um imperador humilde, com os pés descalços e as mãos vazias. A imagem de um homem comum, que só queria o bem e a paz para seu povo. A arte o ajudou apaziguar o Império e salvar Roma. Mais tarde fundou um sistema de ditadura que duraria cerca de 400 anos. 
                ADOLF HITLER - Utilizou-se da arte para enganar o povo alemão e, mais tarde, provocar a Segunda Guerra mundial. 
                 Em nossos dias, a arte ganhou asas na mídia e na internet.
                 Nas eleições americanas, tal como nas nossas, a arte é instrumento sempre presente para iludir e induzir a erro os eleitores. A verdadeira imagem só se revela quando já é tarde. Ela tem sido utilizada para convencer  o povo de que as desigualdades são naturais; que a guerra é a solução e que a paz nem sempre é possível. 
                Os seres humanos, ontem como hoje, são vulneráveis à persuasão da arte. A nós artistas, resta a responsabilidade e a consciência de direcionar a arte para o bem da humanidade. 

COMO ENTENDER A ARTE

             Nicéas Romeo Zanchett 
               Em cada época da história da humanidade existiram artistas com as mais diversas formas de expressão. Cada artista de gênio teve seus próprios meios de expressão.
               Cada obra transmite emoções diferentes; portanto, ao ver uma obra você estará contemplando diversos sentimentos. Partindo dessa premissa, podemos dizer que a arte é um sentimento para contemplar.
                O primeiro passo para compreender uma obra é olhar atentamente, sem se preocupar com o assunto que ele representa. 
                Se aquela obra é algo que você nunca viu, como por exemplo, uma mulher pintada de azul ou um animal cor de rosa, não o condene. Pintura é uma criação, e criação é o poder de abstrair-se de ralidade imediata. 
                Outro fator a ser considerado é que não é um bom assunto que faz uma obra boa; mas uma pintura boa, bem trabalhada, é que torna bom qualquer assunto. 
                 A linguagem da música são sons, e a da obra de arte são as formas e cores. Quando você ouve uma sinfonia clássica não fica se perguntando o que ela quer dizer, mas apenas sente a emoção daquele momento. Da mesma forma, não precisa ficar o tempo todo se perguntando o que o artista quis dizer; procure apenas sentir a emoção. 
                Gostar ou não gostar é uma questão muito pessoal. Deixe que o quadro ou escultura o absorva, pois, sendo ela uma comunicação visual, cabe a "ela" comunicar-se com você e não o contrário.
                 Cada estilo tem linhas próprias de composição. Você poderá observar se essas linhas da composição se desenvolvem sem muitos acidentes ou se, pelo contrário, são extremamente acidentadas. 
                Ao ver uma pintura, observe as cores; num quadro de estilo coerente, geralmente às linhas calmas sucedem-se cores límpidas e espalhadas regularmente na tela; já às linhas acidentadas correspondem cores violentamente contrastadas. 
                Caso ele exista, observe o claro-escuro. Os artistas o utilizam para dar uma sensação de terceira dimensão. Ao claro corresponde a parte que se encontra na luz, e ao escuro, o lado da sombra. Escuros e claros devem equilibrar-se. Nos pintores ou estilos que preferem as cores fortes e linhas serenas, geralmente o claro é pouco visível, e os quadros parecem ter pouca profundidade. É o normal. 
                Cada artista tem suas melhores e piores fases. Isto irá fatalmente se refletir na sua arte. Também cada época e cada indivíduo tem sua época e seu estilo característico. Portanto, não cabe a você querer que pintem igual a um  Leonardo Da Vinci ou um Ingres. São artistas que viveram em mundos diferentes e próprios e, portanto, impossíveis de serem imitados. 
                Artista é um indivíduo que tem sua própria forma de ver o mundo; geralmente não pensa como as outras pessoas. Procure observar se ele deu mais valor aos volumes ou se preferiu dar mais ênfase à cor. No primeiro caso costuma se dizer que é uma pintura de valores escultórios; no segundo caso, temos uma pintura de valores românticos.  Você não pode exigir cores violentas numa pintura de valores escultóricos; na de valores românticos não incrimine o pintor de não saber dar volume às figuras. Lembre-se, cada expressão artística representa os sentimentos do autor e não os seus sentimentos.  Lembre-se também que os sentimentos de artistas podem variar infinitamente. 

sábado, 22 de julho de 2017

UMA AULA DE PINTURA - Por Leonardo Da Vinci

A COMPOSIÇÃO DA PINTURA
Como se representa uma tempestade
                Para formar uma ideia justa duma tempestade, devemos considerar atentamente os seus efeitos. Quando o vento sopra violentamente por sobre o mar ou terra, desloca e leva consigo tudo o que não está firmemente fixo à massa geral. As nuvens devem parecer dispersas e com rotas arrastadas na direção e conforme a força do vento, e confundida com nuvens de areia que se levantam da pria; devem representar ramos e folhas de árvores, como impelidas pela violência  do vento, juntamente com inúmeras e leves substâncias, espalhadas no ar. As árvores e erva devem estar curvadas para o chão, como que cedendo à carreira do vento. Os ramos devem estar torcidos fora do seu natural, com as folhas voltadas e emaranhadas. 
                Quanto ás figuras dispersas na pintura, devem algumas aparecer arrojadas ao chão, tão envolvidas nos seus mantos e cobertas de pó que mal possam distinguir. Das que ficam em pé, umas devem estar abrigadas e segurando-se com força por de traz de algumas grandes árvores, para escaparem á mesma sorte; outras inclinadas para o chão, protegendo a cara do pó, com as mãos, os cabelos e roupas voando para o ar à mercê do vento.
               As granes e tremendas vagas do mar tempestuosos devem estar cobertas de espuma, cujas partes mais tênues sejam levadas pelo vento, como se fossem uma névoa intensa, misturada com o ar. 
               Os navios que se vejam, devem ser representados com o cordame arrebentado e as velas rotas. Uns com mastros partidos, derrubados e o casco todo adornado entre as vagas alterosas.  Parte da tripulação aparecerá como chamando em alto grito por socorro e agarrada aos restos do desmantelado navio. As nuvens parecerão atiradas por tempestuosos vento de encontro aos cumes de altas montanhas, envolvendo-as, quebrando-se com ondas contra uma costa de rochedos.  A atmosfera será representada medonhamente obscurecida pelo nevoeiro, pelo pó e pelas grossas nuvens. 
NOTA - Como podemos observar, Leonardo da Vinci, antes de executar uma obra, fazia uma espécie de roteiro a ser seguido. 
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COMO COMPOR UMA BATALHA
              Primeiro a atmosfera deverá apresentar uma mistura confusa de fundo proveniente das descargas e mosquetaria, e do pó levantando pelos cavalos dos combatentes; \observaremos que o pó. que sobe a terra, é pesado, mas no entanto, em razão das suas ínfimas partículas, é facilmente impelido para cima e misturado com o ar; Apesar disso, cai naturalmente de novo e só as suas partes mais sutis é que alcançam alguma considerável altitude, tornando-se na parte mais alta, tão fino e transparente, que quase parece cor da atmosfera. 
               A fumaça assim misturada com a atmosfera cheia de pó, forma uma espécie de nuvem negra, no cimo da qual ela se destaca do pó por uma expressão azulada, pois o pó conserva mais a sua cor natural. Do lado de onde vem a luz, esta mistura de ar, fumaça e pó, parecerá muito mais brilhante do que do lado oposto.
               Quanto mais envolvidos estiverem os combatentes neste tumultuoso nevoeiro, menos distintamente visíveis serão, e as suas luzes serão mais confusas. Tinjamos duma cor avermelhada, os rostos e corpos dos mosqueteiros e todos os objetos próximos, mesmo a atmosfera ou uma nuvem de pó; em resumo, tudo quanto os rodear, esta tinta avermelhada irá desvanecendo à medida que os objetos estiverem afastados da coisa inicial. 
               O grupo de figuras que aparece a certa distância entre o espectador e a luz, formará uma massa escura sobre um fundo claro; e as suas pernas serão tanto mais indecisas e obscuras quanto mais próximo do solo, onde o pó é mais pesado e denso. 
                Se quisermos representar alguns cavalos perdidos, galopando fora do corpo principal, introduziremos também uns pequenos rolos de pó, tão separados uns dos outros como os saltos de cavalo, e estes pequenos rolos ir-se-ão tornando mais fracos, raros e desvanecidos, à proporção que o cavalo os vai deixando para traz.Por consequência aquele que estiver mais perto dos pés do cavalo, será melhor determinado, mais pequeno e mais denso de todos. 
                A atmosfera deverá apresentar-se atravessada em todas as direções por flechas; umas subindo, outras descendo, e outras voando horizontais. As balas dos mosqueteiros, conquanto se não vejam, serão indicados na sua trajetória por um rasgo de fumaça, que se destaca dentre a confusão geral. As figuras no primeiro plano deverão ter os cabelos cobertos de pó, assim com as sobrancelhas e todas as partes suscetíveis de o reter. 
                O partido vencedor correrá para a frente, os cabelos e coisas leves voando ao vento, as sobrancelhas carregadas, e o movimento de todos os membros propriamente combinado; por exemplo, ao atravessar o pé direito o braço esquerdo deverá vir à frente também. Se quisermos representar algum deles caindo, marcaremos o vestígio da queda no pó coberto de sangue coagulado e escorrendo; e onde a terra estiver menos impregnada de sangue, deixaremos ver os sinais dos pés dos homens e cavalos que por ali passaram. Representaremos alguns cavalos arrastando os corpos dos seus cavaleiros e deixando atrás de si um sulco aberto pelo corpo assim rojado. 
                As fisionomias dos que vão sendo vencidos deverão aparecer pálidas e abatidas. As sobrancelhas levantadas e muitas rugas pela testa e pelas faces. As suas narinas um pouco dilatadas, formando várias rugas arqueadas terminando nos cantos dos olhos, rugas que são produzidas pelo abrir e levantar das narinas. O lábio de cima levantado, deixando ver os dentes. As boas abertas e exprimindo violentas lamentações. Poderá um ficar caído no chão ferido, esforçando-se por amparar o corpo com uma mão e tapando os olhos com a outra, de palma voltada para o lado do inimigo. Outras fugindo e com as bocas  abertas parecendo gritar. Por entre as pernas dos combatentes, o chão deverá estar juncado de toda a quantidade de armas e escudos partidos, lanças, espadas, etc. Devemos apresentar diversos cadáveres, uns completamente cobertos de pó, outro só parte; o sangue que parece sair imediatamente da ferida, deverá ter a sua cor natural e escorrer em fio tortuoso até que, misturando-se com o pó, forme uma espécie de lama avermelhada. Alguns poderão estar na agonia da morte; os dentes cerrados, os olhos desvairadamente fitos, os punhos fechados e as pernas em contorcidas posições. Outros aparecerão desmaiados e abatidos pelo inimigo, mas ainda lutando a murro e a dentes, e procurando tirar uma terrível, ainda que inútil, desforra. Poder-se-á também representar um cavalo perdido sem cavaleiro, fugindo em desordenada aflição;a crina voando ao vento, pisando debaixo das patas tudo o que lhe aparece na frente e causando imenso mal. Poder-se-á também pintar um soldado ferido, meio caído no chão e tentando cobrir-se com o escudo, enquanto um contrário inclinando-se sobre ele procura dar-lhe o golpe final. Vários cadáveres amontoar-se-ão debaixo dum cavalo morto. Alguns dos vencedores, como que parando de combater, estarão limpando a cara do pó misturado com suor e água dos olhos. 
                O corpo de reserva representar-se-á avançando alegre, mas cautelosamente; as sobrancelhas contraídas fazendo pala das mãos para observar os movimentos do inimigo, por entre as nuvens de pós e fumaça, e parecendo todos atentos às ordens do comandante. Poderemos também representar o comandante brandido seu bastão, avançando e apontando para o lugar aonde eles são precisos. Pode-se também introduzir um ribeiro com cavalos a atravessá-lo, chapinhando a água para o ar, e cobrindo toda a terra em volta de água e espuma. Não se deve deixar um só lugar sem sinal de sangue e carnificina. 

NOTA - Observem como Da Vinci era minucioso. Ele prestava atenção aos mínimos detalhes para só então definir a cena que iria desenhar e posteriormente pintar. Agia como um arquiteto projetando sua obra antes de executá-la. 

REPRESENTAÇÃO DE UM ORADOR E DO SEU AUDITÓRIO
                 Se tivermos de representar um homem a falar a uma grande assembléia, teremos de considerar o assunto do discurso e adaptar a sua atitude a esse assunto. 
                Se o orador pretende convencer é preciso demonstrá-lo pelo gesto. Se estiver dando uma explicação deduzida de diversos fatos, deverá meter um dedo da mão esquerda entre os dois da direita, e conservar os dois encolhidos, e voltar a cara para o auditório com a boca entreaberta, parecendo falar.  Se estiver sentado deverá parecer que se vai levantar um pouco, e ter a cabeça inclinada para frente.  Mas, se for representado de pé, terá o peito e a cabeça inclinada para a frente e para o lado do auditório. Este deverá parecer silencioso, atento, com os olhos fitos no orador, em sinal de admiração. Deverá haver alguns velhos com as bocas muito fechadas, em sinal de aprovação, e os lábios apertados de maneira a fazerem rugas nos cantos da boca e nas bochechas, e na testa ao levantar as sobrancelhas, como que assombrados de espanto. Uns sentados, com as mãos entrelaçadas em volta dos joelhos; outros com uma perna por cima da outra e sobre ela uma mão suportando o cotovelo, e a outra segurando o queixo, coberto de barba venerável. 

DOS GESTOS DEMONSTRATIVOS 
                 Ação pela qual, numa figura, indica qualquer ponto máximo, quer no sentido de tempo quer na situação, deve ser expressa pela mão ligeiramente afastada do corpo. Mas se esse mesmo ponto estiver muito afastado, a mão deve também estar muito retirada do corpo e a cara da figura voltada para aquela para quem o está a apontar. 

SOBRE A ATITUDE DOS CIRCUNDANTES PERANTE 
ALGUM ACONTECIMENTO SENSACIONAL.
                Todos aqueles que assistem a um acontecimento digno de menção experimentam a sua admiração, mas de diferentes maneiras como quando a mão da justiça pune um malfeitor. Se o assunto for um ato de devoção, os olhares de todos os presentes estarão fitos na direção do objeto da sua adoração, secundados por vários movimentos de piedade feitos com os outros membros. 
                Se for um caso para rir, ou então um caso que inspire compaixão eprovoque lágrimas, não será necessário que todos tenham os olhos voltados para o objeto, pois exprimirão os seus sentimentos por diversas maneiras; e será  bom representar diversas figuras reunidas em grupos afim de se regozijarem ou lamentarem juntas. Se for um acontecimento horrível, os rostos dos que vão fugindo a tal vista exprimirão um grande medo, por meio de vários movimentos, que serão explicados no tratado sobre movimentos. 
NOTA - Esta aula de da Vinci nos mostra como ele trabalhava para compor uma obra. Era, sem dúvida, um grande observador das atitudes das pessoas e suas maneiras de expressão. Naquele tempo não havia fotografia - que tem capacidade para captar, com precisão, e fixar  cada momento de algum acontecimento. Da Vinci era um exímio desenhista, e costumava desenhar - de forma rápida - todas as pessoas e o cenário que lhe interessava para a futura composição artística; nada escapava ao seu olhar atento e julgador que fizeram dele o grande artista, hoje reconhecido como um dos maiores, senão o maior, dos gênios que a humanidade teve. Leonardo sempre salientou a importância do desenho que, segundo dizia, era uma espécie de projeto da obra a ser realizada; Hoje, infelizmente, muitos artistas não dão valor ao desenho; alguns nem sequer sabem desenhar.