sexta-feira, 18 de agosto de 2017

A ARTE - (De O Riso)

Henrique Bergson 
                  
                 Qual é o objetivo da arte? Se a realidade viesse impressionar diretamente os nossos sentidos e a nossa consciência, se pudéssemos entrar  em comunicação imediata com as coisas e conosco mesmos, creio bem que a arte seria inútil, ou antes que nós seríamos artistas, porque a nossa alma vibrará então continuamente em uníssono com a natureza. Os nossos olhos, auxiliados pela nossa memória, recortariam no espaço e fixariam no tempo quadros inimitáveis. O nosso olhar aprenderia na passagem, esculpidos no mármore vivo do corpo humano, fragmentos de estátua, tão belos como os da estatuaria antiga. Ouviríamos cantar no fundo das nossas almas, como uma música algumas vezes alegres, a maior parte das vezes melancólica, sempre original, a melodia ininterrupta da nossa vida interior.  Tudo isso está em torno de nós, tudo isso está em nós, e todavia, nada de tudo isso é o apercebido por nós distintamente. Entre a natureza e nós mesmos, que digo? entre nós e a nossa própria consciência, um véu se interpõe, véu espesso para o comum dos homens, véu ligeiro, quase transparente, para o artista e para o poeta. Que fada teceu esse véu? Foi por malícia ou por amizade? Era preciso viver, e a vida exige que aprendamos as coisas na relação que elas tem com as nossas necessidade. Viver consiste em agir. Viver é não aceitar dos objetos senão a impressão útil para responder a eles por reações apropriadas; as outras impressões devem obscurecer-se ou não chegar até nós senão confusamente. Eu olho e creio ver, escuto e creio ouvir, estudo-me e creio ler no fundo do meu coração. Mas o que eu vejo e o que eu ouço do mundo exterior é simplesmente o que os meus sentidos dele extraem  para esclarecer a minha conduta; o que conheço de mim mesmo é o que aflora à superfície, o que toma parte na ação. Os meus sentidos e a minha consciência não me exibem da realidade, senão uma simplificação prática.Na visão que me dão das coisas e de mim mesmo, as diferenças inúteis ao homem apagam-se, as semelhanças úteis ao homem acentuam-se, caminhos me são traçados de antemão em que a minha ação se internará. Estes caminhos são aqueles em que a humanidade inteira passou antes de mim. As coisas foram classificadas em vista do partido que se poderia tirar delas. E é esta classificação que eu apercebo, muito mais do que a cor e do que a forma das coisas. Sem dúvida o homem é já muito superior ao animal nesse ponto. É pouco provável que o olho do lobo estabeleça qualquer diferença entre o cabrito e o cordeiro; são para o lobo duas presas idênticas, sendo igualmente fáceis de apanhar, igualmente boas para comer. Nó é que fazemos uma certa diferença entre a cabra e o carneiro; mas distinguimos uma cabra duma cabra, um carneiro dum carneiro? A Individualidade das coisas e dos seres escapa-nos todas as vezes que nos não é materialmente útil apercebê-la. E ai mesmo, onde nós observamos (como quando distinguimos um homem de outro homem), não é a individualidade mesmo que a nossa vista aprende, isto é, uma certa harmonia completamente original de forma e de cores, mas apenas um ou dois traços que facilitarão o reconhecimento prático. 
                 Enfim, para dizer tudo, nós não vemos as mesmas coisas; limitamo-nos, a maior parte das vezes, a ler etiquetas coladas sobre elas. Esta tendência, saída da necessidade, ainda se acentuou sob a influência da linguagem. Porque as palavras (à exceção dos nomes próprios) designam todas gêneros. A palavra, que não nota da coisa senão a sua função mais comum e o seu aspecto banal, insinua-se ente ela e nós mesmos, e mascararia a sua forma aos nossos olhos se essa forma não se dissimulasse já por trás das necessidades que criam a própria palavra.  E não são apenas os objetos exteriores, são também os nossos próprios estados de alma que se nos furtam no que tem de íntimo, de pessoal, de originalmente vivido. 
                 Quando experimentamos amor ou ódio, quando nos sentimos alegres pu tristes, é bem o nosso próprio sentimento que chega à nossa consciência com as mil nuanças fugidias e as mil ressonâncias profundas que fazem dele alguma coisa de absolutamente nosso? Seríamos então todos romancistas, todos poetas, todos músicos. Mas a maior parte das vezes não nos apercebemos do nosso estado de alma senão o seu desenvolvimento exterior. Não aprendemos dos nossos sentimentos senão o seu aspecto impessoal, aquele que a linguagem pôde notar, uma vez para sempre,  porque é aproximadamente o mesmo, nas mesmas condições, para todos os homens. assim, até no nosso próprio indivíduo, a individualidade nos escapa. Movemo-nos entre generalidades e símbolos, como num campo fechado em que a nossa força se mede utilmente com outras forças; e fascinados pela ação, atraídos por ela, para o nosso maior bem, para o terreno que para si escolheu, vivemos numa zona intermédia entre nós e as coisas, exteriormente às coisas, exteriormente também a nós mesmos. Mas de quando em quando, por distração, a natureza suscita almas mais desapegadas da vida.  Não falo desse desapego querido, raciocinado, sistemático, que é a obra de reflexão e de filosofia. Falo dum desapego natural, inato à estrutura do sentido ou da consciência, e que se manifesta espontaneamente por uma maneira virginal, de algum modo, de ver, de ouvir ou de pensar. Se este desapego fosse completo, se a alma não aderisse mais à ação por nenhuma das suas percepções, ela seria a alma dum artista como o mundo ainda não viu. Distinguir-se-ia em todas as artes ao  mesmo tempo, ou antes as fundiria todas numa só. Aperceberia todas as coisas na sua pureza original, tanto as formas, as cores e os sons do mundo material, como os mais sutis movimentos da vida interior. Mas é pedir demais à natureza. Para aqueles mesmos que ela fez artistas, foi acidentalmente, e dum único lado, que levantou o véu, que se esqueceu de ligar a percepção à necessidade. E como cada direção corresponde a um sentido, é por um dos seus sentidos, e por esse sentido somente, que o artista é votado à arte. Dai, na origem, a diversidade das artes. Este aplica-se às cores e a formas, e como ama a cor pela cor, a forma pela forma, como as percebe para elas e não para ele, é a vida interior da coisas que verá transparecer através das suas formas e das suas cores. Ele a fará entrar pouco a pouco na nossa percepção ao princípio, desconcertada. Por um momento, pelo menos, nos desembaçará dos preconceitos de forma e de cor que se interpunham entre os nossos olhos e a realidade. E realizará assim a mais alta ambição da arte, que é aqui revelar-nos a natureza. - Outros recolher-se-ão de preferência em si mesmos. Sob as mil ações nascentes que desenham de fora um sentimento, detrás da palavra banal e social que exprime um estado de alma individual, é o sentimento, é o estado de alma que eles irão procurar simples e puro. E para nos induzir a tentar o mesmo esforço sobre nós mesmos engenhar-se-ão a fazer-nos ver alguma coisa do que tiveram visto; por arranjos rítmicos de palavras, que chegam assim a organizar-se conjuntamente e a animar-se duma vida original, dizem-nos, ou antes sugerem-nos coisas que a linguagem não era feita para exprimir. - Outros cavarão mais profundamente ainda. Sob essas alegrias e essas tristezas que podem com rigor traduzir-se em palavras, aprenderão alguma coisa que já não tem nada de comum com a palavra, certos ritmos de vida e de respiração que são mais interiores ao homem que os seus sentimentos mais interiores, sendo a lei viva, variável com cada pessoa, da sua depressão e da sua exaltação, das suas saudades e das suas esperanças. Desprendendo, acentuando esta música, impo-la-ão à nossa atenção; farão que nós mesmos nos insiramos nela involuntariamente, como transeuntes que entram numa dança. E por ai nos levarão a agitar também, mesmo no fundo de nós, alguma coisa que esperava o momento de vibrar. - Assim, a arte não tem outro objeto senão afastar os símbolos praticamente úteis, tudo o que nos mascara a realidade, para nos pôr face a face com a realidade mesmo. Foi dum mal-entendido sobre este ponto que nasceu o debate entre o realismo e o idealismo na arte. A arte não é seguramente senão uma visão mais direta da realidade. Mas esta pureza de percepção implica uma ruptura com a convenção útil, um desinteresse inato e especialmente localizado do sentido ou da consciência, enfim uma certa imaterialidade da vida, que é o que sempre se chamou idealismo. De maneira que se poderia dizer, que o realismo está na obra quando o idealismo está na alma, e que é à força de idealidade somente que se toma contato com a ralidade. 
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Henrique Bergson, filósofo francês, nasceu em Paris em 1859. Aos 22 anos entrou na Escola Normal superior. Ensinou durante 17 anos nos liceus da província, depois de Paris, e em 1899 foi nomeado professor da Escola Normal. Foi professor do Colégio de França desde 1900. Begson é um filósofo original de longa e profunda influência, além de notável escritor. As suas obras são por toda a parte e em todos os campos, estudadas e discutidas; apoiam-se nelas, além de várias correntes filosóficas, uma corrente religiosa e um movimento socialista: o modernismo católico e o sindicalismo revolucionário. - Obras principais: E'ssai sur les données immediates de la conscience, 1889; Matiére et mémoire, 1896; Le Rire, 1900; l'Evolution créatrice, 1907. 

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